'45 Anos' traz sofrimento não elaborado e passagem do tempo psíquico

Exibição e debate do longa encerrou segundo módulo do Ciclo de Cinema e Psicanálise

Bianka Vieira
São Paulo

Deixar perdas e acontecimentos ruins no passado é uma boa decisão? No filme britânico “45 anos”, dirigido por Andrew Haigh, vê-se que episódios fixados no inconsciente voltam a se manifestar e a gerar novos conflitos.

O filme, exibido e debatido na quarta-feira (27), encerra o módulo sobre amor do Ciclo de Cinema e Psicanálise. “O grande brilho da teoria psicanalítica é mostrar que o desenvolvimento acontece quando se elaboram as perdas. Há mil subterfúgios para a gente não enfrentar a dor, mas é com ela que se ganha autonomia”, disse a psicanalista Edoarda Paron. 

No longa, Kate (Charlotte Rampling) e Geoff Mercer (Tom Courtenay) preparam uma festa para celebrar seus 45 anos de casados. A tranquila convivência do casal é perturbada quando Geoff recebe uma carta da Suíça. Nela, é relatado que o corpo de Katia, sua ex-namorada que se acidentou durante escalada nos Alpes em 1962, foi encontrado. 

Até então, Kate nem sabia que o marido havia tido uma companheira —e muito menos que havia sido o seu primeiro amor. A descoberta balança as mais de quatro décadas vividas lado a lado. “Nem tudo que não é elaborado se torna uma maldição, mas, quando acontece, talvez seja uma boa maldição para o nosso trabalho”, brincou a psicanalista Luciana Saddi, que participou da conversa mediada pelo repórter da Folha Everton Lopes Batista.

45 anos
Cena do filme "45 anos", de Andrew Haigh - Reprodução

Para as psicanalistas que participaram do debate, o filme extrapola a temática da perda e lida com a passagem do tempo psíquico. “Embora o relógio seja frequentemente mostrado, a obra expõe a dicotomia entre o tempo ‘real’, que nós vivemos, e o tempo das nossas lembranças, situadas no passado e no presente, que vão e voltam e têm outra dimensão”, comentou Paron.

Ao todo, são cinco os dias entre o início da trama e a festa. Para a teoria psicanalítica, a consciência é apenas a ponta de um iceberg, ou seja, é uma visão lacunar dos processos psíquicos de cada um. No caso do personagem interpretado por Tom Courtenay, que tem emoções despertadas tardiamente, é como se uma área congelada de seu inconsciente emergisse de forma bastante viva com a chegada da carta. 

“O cinema tem esse recurso que é muito semelhante ao imagético do nosso psiquismo e dos sonhos que funcionam através de deslocamento e imagens condensadas”, complementou Paron. “45 anos” traz também reflexões sobre a dinâmica do casal e o papel de domínio quase materno exercido por Kate. “É um barco furado tentar controlar a vida de alguém e o que essa pessoa foi antes de você.

Quando a gente tem esse impulso de tomar posse, de ter controle, a gente sofre mais, porque é impossível realizá-lo”, disse Saddi. Em certo ponto da narrativa, o casal Mercer tenta uma relação sexual, cena que trouxe para o debate o seguinte questionamento: estaria a sociedade preparada para lidar com os desejos e angústias dos idosos?

“As pulsões nunca cessam. Embora o corpo esteja velho, elas não terminam. E o mundo está cheio de velhinhos. As condições de saúde não são muito boas, mas os que tiverem a menor estrutura continuarão com seus afetos e suas pulsões muito mexidas”, instigou Saddi.

O Ciclo de Cinema e Psicanálise, que conta com apoio da Folha, é realizado pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e pela Sociedade Amigos da Cinemateca. Os debates quinzenais serão retomados em agosto com um módulo sobre poder.

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