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'A Balada do Cálamo' é uma espécie de autobiografia em construção

Obra do afegão Atiq Rahimi oscila entre sua história de errância e seu presente em Paris

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Leda Cartum

A Balada do Cálamo

  • Preço R$ 42 (200 págs.)
  • Autoria Atiq Rahimi
  • Editora Estação Liberdade
  • Tradução Leila de Aguiar Costa

Conta-se que há muito tempo, na Turquia, um homem anunciou que venderia o Livro da Sabedoria por cem peças de ouro, e que alguns achariam barato. Ao que Yunus Emré, conhecido mestre sufi, respondeu: "E eu darei a chave para entendê-lo, e quase ninguém a aceitará, mesmo de graça".

Essa pequena história não está no livro "A Balada do Cálamo", do afegão exilado na França Atiq Rahimi. Mas o autor, em suas referências que transitam da antiga poesia persa a escritores europeus contemporâneos, persegue justamente essa chave do conhecimento profundo —que, até se for oferecida de graça, sabemos ser uma das coisas mais difíceis de se localizar.

O livro é uma espécie de autobiografia em construção, que a partir da imagem da primeira letra do alfabeto persa —Alef— volta à infância de Rahimi no Afeganistão e oscila entre sua história de errância e seu presente em Paris.

O Alef é chamado de "chave que põe em movimento a máquina dos desejos": pela letra, são invocados os países, as citações e as reflexões que marcaram a trajetória do autor.

Onde estaria a chave? É na ideia de ausência que o livro encontra sua resposta. No entanto, para um autor exilado, Rahimi parece ter se integrado muito bem à literatura pós-romântica do país que o recebeu: a falta e o invisível —para ele como para muitos escritores franceses— são a porta de entrada do trabalho de criação.

Em uma escrita de gênero híbrido que lembra um diário, as frases se intercalam com traços que partem da caligrafia persa, chamados de calimorfias. Os desenhos se transformam em mães ou mulheres nuas, associados a poemas de Victor Hugo ou de Baudelaire.

Na tentativa de mesclar as culturas que atravessou em sua vida, o autor repete o movimento de tantos artistas eurocêntricos cujas obras estão cheias de ornamentos orientais --e, assim, acaba por se autoexotizar. Ao dizer que se sente sempre estrangeiro, não importa onde esteja ("eu estou sempre ailleurs"), ele vê a si mesmo de acordo com uma perspectiva já bem conhecida do cânone francês.

Em uma história tradicional contada em certa passagem do livro, o personagem Mulá Nasrudin procura uma chave sob um lampadário, mesmo sabendo que a perdeu dentro de casa. Rahimi interpreta essa anedota como reflexo do destino dos exilados, que perderam a própria chave em seus países e procuram por ela, mesmo sabendo que não vão encontrá-la.

Mas Nasrudin é, antes de tudo, o tolo que ilustra as ações absurdas da ignorância humana, e talvez esteja nos mostrando a mesma coisa que disse aquele mestre da Turquia: ainda que a chave esteja à mão, acabamos voluntariamente nos afastando dela, por medo ou por desconhecimento.

Não é porque a chave está num ponto invisível ou inacessível que ela não é encontrada; o exílio, nesse sentido, estaria dentro de nós mesmos. A "Balada do Cálamo" se propõe a ir até "o fundo de si" para desvendar a própria origem. Mas, na maior parte do texto, as palavras se mantêm na superfície, sem atingir regiões mais escuras e inexploradas.

Se o autor define a sua escrita como "corpo que não preenche o vazio, revela-o", resta saber de que qualidade é esse vazio revelado no livro.

Leda Cartum
Escritora, publicou ‘O Porto’ (Iluminuras) e ‘As Horas do Dia – Pequeno Dicionário Calendário’ (7Letras)
 

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