Um estranho legado ofuscou a extensa obra do austríaco Leopold von Sacher-Masoch: a psiquiatria emprestou seu sobrenome para batizar o masoquismo. Desde a publicação, em 1870, sua novela mais famosa, "A Vênus das Peles", foi relida diversas vezes.
A peça "Vênus Ex Libris" reúne referências numa espécie de revisão literária da obra, como sugere a expressão latina do título. Na encenação de Luiz Fernando Marques, os atores Rafael Steinhauser e Ana Carolina Godoy recriam o jogo erótico de submissão do homem pela mulher que fez a novela ser rotulada como pornográfica.
A relação entre sexo e poder vai além do sadomasoquismo; surge na disputa entre os personagens pelo controle da narrativa. Segundo a dramaturgia, o volume poderia ser lido como manifesto feminista, ao advogar pela equidade entre os gêneros, e machista, por afirmar ser impossível a igualdade entre homem e mulher nas relações amorosas. O jogo erótico tampouco escapa ao olhar psicanalítico.
Transpor a obra original para o teatro e abarcar suas sucessivas reinterpretações parece o objetivo da montagem.
Embora a variedade de vieses seja oportuna, raramente se traduz em narrativa ou personagens bem desenvolvidos.
Irregular, o resultado dramatúrgico ora resvala a um didatismo dissonante, ora alude a informações somente perceptíveis ao espectador iniciado na obra literária.
Também são mal delineados os personagens. A despeito do competente trabalho dos intérpretes, falta ao texto nuance e ambiguidade.
Ainda assim, entrevê-se na encenação uma projeção espelhada: os atores encarnam representações modernas dos personagens.
A montagem de Marques consegue suprir as deficiências da dramaturgia e apresentar soluções engenhosas. Assim, o espetáculo alterna atmosferas oníricas e urbanas numa unidade curiosamente consistente.
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