Descrição de chapéu

Diretora de 'Paraíso Perdido' usa poesia do brega para mostrar como arte imita vida

A designação 'brega' pode ser somente um preconceito seu. Pode cantar junto.

Erasmo Carlos em Gravação de "Paraíso Perdido", longa de Monique Gardenberg
Erasmo Carlos em gravação de "Paraíso Perdido", longa de Monique Gardenberg. - Fabio Braga/Divulgação
Miguel de Almeida
São Paulo

Não sei você, mas adoro Erasmo Carlos. Anos atrás, durante um jantar, propus a Roberto Carlos escrever um roteiro onde ele seria o mocinho e seu velho parceiro, um vilão. Desconfiado, como sempre, aliás, ele quis saber o porquê de Erasmo no inusitado papel. “Para ele manter a fama de mau.”

Tempos depois, esse seria o titulo da autobiografia de Erasmo Carlos, na qual, em um dos capítulos finais, ele conta sobre uma noite de sábado na qual o levei ao mítico Madame Satã, então o bas-fond mais cult da pauliceia, um muquifo na Bela Vista capaz de juntar socialites e skinheads. “Será que eles vão gostar de mim por lá?”, me perguntou Erasmo ainda no carro. Dei risada. “Seus problemas serão outros”, disse.

Quando Erasmo Carlos entrou no Madame Satã, houve um silêncio imediato. A música ficou em suspenso. Todos correram para cima dele. Horas depois, ainda pendurado em seu ouvido, lá estava João Gordo, o temido líder do Ratos do Porão. Dei risada.

O Madame Satã lembra sob reservas o fictício cabaré Paraíso Perdido, também nome do novo filme de Monique Gardenberg. E lá em seu palco brilha José (Erasmo Carlos), seu proprietário, patriarca de um núcleo familiar perpassado por crimes passionais, traições amorosas e dores de cotovelo. Para não ser só bolero, há perdão, tolerância e um olhar doce sobre os fora de acento.

A narrativa traz um ex-professor, viúvo de uma desaparecida política, com um casal de filhos também com trajetórias enviesadas —ele carrega a paixão lancinante vida afora após deixar a mulher por causa de uma traição; ela é assassina do marido que a espancava e mãe de um garoto, estrela da boate Paraíso Perdido sempre travestido de mulher.

Por ser homossexual, bastante afeminado, é vítima constante de ataques homofóbicos. Mas não se perde o humor. Diante da hesitação de uma pessoa que não sabia se usaria com ele pronome masculino ou feminino, escuta dele: “Pode não parecer, mas gosto de ser homem”.

Para desespero de Bolsonaro, é uma situação que faz parte da família brasileira contemporânea.

Nessa família, entre tantas diferenças de temperamento e de escolhas, todos se aceitam, se protegem, dentro de alta dosagem de empatia — aqui no sentido de compreender o diferente.

As músicas levadas ao palco ou renitentes como trilha sonora, conduzem a narrativa à semelhança de um alto- falante de praça ou de uma penteadeira de puta (as jukebox) das zonas de meretrício no interior brasileiro. 

As letras derramadas, de melodia escandida, funcionam como legendas da narrativa —e, curiosamente, causam no espectador uma identificação, ou cumplicidade passiva, diante dos desacertos emocionais. 

Fala-se aqui de amanticídio, homicídio, traição, amor não correspondido. E ainda de perdão. Verdade: o ser humano por vezes é bem cruel... e complexo. É da raça.

Não se sabe se o universo derramado das canções bregas, com seus excessos em tons greco-trágicos, moldou a alma profunda do brasileiro —ou se foram os enredos pessoais risca-faca do brasileiro que resultaram numa música popular de lamento e/ou celebração ao abandono, à dor-de-chifre e ao despeito.

Gardenberg emoldurou, numa linda história, a paixão pelo universo brega, enquanto usou a poesia desbragada de seus compositores para explicar como a arte imita a vida.

Difícil não se emocionar quando a canção de Raul Seixas salta da tela: “Jamais estive tão seguro de mim mesmo/quando escolhi ela para ser meu grande amor”. 

Escancaradamente brega? Isso mesmo, relaxe: a designação “brega” pode ser somente um preconceito seu. Pode cantar junto.

Miguel de Almeida é escritor e documentarista, diretor de ‘Tunga, o Esquecimento das Paixões’

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