Em novos discos, Ava Rocha e Maria Beraldo cantam feminismo pós-empoderamento

Letras de 'Trança' e 'Cavala' destacam artistas em cancioneiro nacional marcado pela relação com o masculino

As cantoras Maria Beraldo e Ava Rocha, que lançam os álbuns "Cavala" e "Trança"
As cantoras Maria Beraldo e Ava Rocha, que lançam os álbuns "Cavala" e "Trança" - Rafael Jacinto e João Kehl/Folhapress
Rafael Gregorio
São Paulo

Dois discos recém-lançados refrescam a música brasileira com renovados conceitos de feminino e de feminista: “Trança”, de Ava Rocha, e “Cavala”, de Maria Beraldo.

Ava consolida-se como uma força da nova MPB em seu terceiro trabalho, e Beraldo conjuga tradição e vanguarda em sua estreia autoral.

Chama a atenção o protagonismo feminino nos discursos delas. Não por ser novidade; de Dolores Duran (1930-1959) à sertaneja Marília Mendonça, passando por Elis Regina (1945-1982) e Elza Soares, é vasto o cancioneiro nacional de mulheres fortes.

Mas se a maioria narrou empoderamento sob a ótica da relação com homens, nesses discos eles estão ausentes ou assumem papéis distintos.

Maria Beraldo, 30, é clarinetista de formação. Sua estreia é fruto de dupla revelação: descobriu-se compositora e assumiu-se gay na feitura do trabalho. “O disco reflete minha saída do armário”, diz.

O registro é popular, mas o estofo flexiona limites da canção, para o que contribui sua formação: é bacharel e mestre em música pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Ela integra a banda Quartabê, na qual toca clarinete e divide os arranjos com os colegas Joana Queiroz, Mariá Portugal e Rafael Montorfano, o Chicão. Também assina arranjos de sopros em faixas do novo disco de Elza Soares e tem currículo vasto como instrumentista. 

Sua relação com os sons começou na infância, tocando flauta na escola de música da mãe, em Florianópolis. Estudou bateria, piano e cavaquinho, mas gamou no clarinete e no clarone (o clarinete-baixo, de som mais grave) e, há pouco, aprendeu violão e guitarra, para compor.

A colaboração com Arrigo Barnabé, em releitura da ópera-rock “Clara Crocodilo”, foi decisiva, ela explica, e impulsionou as experimentações que deságuam em “Cavala”.

Primeiro, porque a motivou a estudar canto. Depois, porque foi o convite dele que a trouxe a São Paulo, em 2013.

Sentiu-se acolhida pela imensidão da cidade. Como ela, seu álbum transita por estéticas amplas, do eletrônico à canção, passando por experimentos com ritmo, harmonia, ruídos —ela diz que para tanto foi determinante a versatilidade do músico Tó Brandileone, com quem assina a produção.

A mescla de público e privado inspirou o título do álbum. Uma das canções tinha por destinatária uma artista criadora de uma obra chamada “Égua”. Preferiu dizer “Cavala”.

“A brutalidade do cavalo simboliza atributos que são tirados de nós desde a infância, por serem tidos como masculinos, e depois nos fazem falta. Em uma vogal”, completa, “devolvo à mulher algo que é dela”.

Sua lírica revê tal metamorfose, como no quase-manifesto “Tenso”: “Tenso/ Tão desavisado meu tesão/ Vive um momento tenso/ Livre, leve, solto/ De coração/ É gostoso/ É tenso.”

Muda o lugar de fala, mudam as musas, que se tornam, por exemplo, “gatas sapatas mães de bebê”. 

Também despontam diálogos, como em “Maria”, de tocante remissão a “Paratodos”, de Chico Buarque:

“Minha bisavó baiana eu imagino só/ Minha avó nasceu no interior de Minas/ E se matou por lá também”.

Apesar da lírica pungente, Beraldo —que lança seu álbum ao vivo nesta quinta (28), às 20h, no Itaú Cultural—  reluta em assinar um conceito de feminismo; para ela; seu disco, mais do que inovar, colhe de um mundo em que a luta por igualdade está só no começo.

Propulsão 'xamânica'

Se no álbum de Beraldo o feminismo é cru, no de Ava Rocha, 39, ele serve de metáfora catalisadora de forças metafísicas.

Em “Trança”, a compositora, poeta e cineasta —e, sim, filha de Glauber Rocha (1939-1981)— parte de temas universais, como amor, solidão, política e liberdade, para flexionar as fronteiras do feminino.

Por exemplo, nos coros de nomes como Juçara Marçal e Linn da Quebrada, ou ao elencar mulheres, como Victoria dos Santos e Ariane Molina, para as percussões que marcam o disco.

“Ter mulheres nesses instrumentos é significativo, porque o tambor é um portal ao plano espiritual”, diz Ava.

Sua propulsão xamânica se mostra em “Lilith”, da “Irmã de santo, mana de sorte/ Mãe, filha, espírita-santa/ Puta mordendo a maçã”.

Também em “Joana Dark”, inspirada na santa guerreira Joana D’Arc (1412-1431). A música se funda em um batidão que lembra o dos MCs, mas com percussões de ascendência africana, como num baile funk em um terreiro.

Nela, Ava e amigas cantam em uníssono: “Ó as rainha do pecado tão chegando/ Mas abre o olho que aqui sou eu quem mando/ Sou eu queimando na fogueira do pecado”.

Em seus conceitos, “Trança” cita Tunga (1952-2016), de quem Ava era próxima. Os trançados eram importantes na obra do artista plástico; simbolizavam seu fluxo de ideias e sua afeição temática pela passagem do tempo.

Musicalmente, o álbum a leva além do que seus antecessores “Diurno” (2011) e “Ava Patrya Yndia Yracema” (2015).

Com apoio do Natura Musical, produção de Eduardo Manso e Fabiano França e direção musical de Manso e Negro Leo, marido dela, o disco —a ser lançado em julho, no Auditório Ibirapuera— reforça o rock anômalo de Ava, com propensão à mistura que lembra Itamar Assumpção (1949-2003), homenageado em uma música.

Ela diz chamar seus sons de “música transgênero”. Mas quais seriam os ingredientes de sua antropofagia? “A liberdade, o Brasil, minhas raízes colombianas, judaicas, índias.”

Para cruzar essas forças, ela reúne 35 participações nas 19 músicas do álbum. A coletividade é parte da trança, diz: “Somos todos singulares, mas o mais importante é a troca”.

Tais intercâmbios, diz, se intensificaram em São Paulo, onde vive há um ano e meio. Já residira na cidade em 2006, quando participou de “Os Sertões” no Teatro Oficina, sob a batuta de Zé Celso, que a estimulou a cantar.

Mesmo após três discos, Ava ainda se vê como uma mente do cinema. E, como a Beraldo, o roteiro do preconceito lhe é familiar: “A mulher é discriminada do fazer artístico ao pegar um ônibus”. Daí que cantar seja, em sua visão, sempre uma postura política.

Cavala

  • Quando Lançamento: quinta (28/6), às 20h, no Itaú Cultural (av. Paulista, 149).
  • Preço Grátis; retirar ingressos uma hora antes do evento.
  • Autor Maria Beraldo
  • Gravadora Risco

Trança

  • Quando Show de lançamento: sex. (27/7), às 21h, no Auditório Ibirapuera (av. Pedro Álvares Cabral, s/n). R$ 30.
  • Autor Ava Rocha
  • Gravadora Natura Musical e selo Circus
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