O quadrinista italiano Gipi impõe aos leitores de “A Terra dos Filhos” o ponto de vista de seus dois jovens protagonistas. Os meninos nasceram em um mundo pós-apocalíptico, com poucos rastros da civilização como existe hoje.
A rotina dos garotos e as regras de sobrevivência nesse contexto são ditadas pelo pai de ambos: pescas e peixes são proibidos, toda caça deve ser limpa assim que morta e ninguém deve encostar nos cadáveres que boiam ao redor do barco em que a família vive. O passado que antecedeu o contexto trágico dos três não importa e qualquer forma de expressão de amor entre eles não é bem-vinda. O único propósito é sobreviver.
O primeiro trabalho de Gipi publicado em português explicita para o leitor brasileiro o domínio narrativo e a técnica singular de um dos autores europeus de quadrinhos mais cultuados no mundo. Ao contrário das aquarelas repletas de nuances de alguns de seus trabalhos mais famosos, o autor de 54 anos optou por ilustrar o álbum em preto e branco com uma linha finíssima, repleta de hachuras, que acentua a realidade bruta e hostil de seus personagens.
O cenário concebido por Gipi dialoga com outras tramas pós-apocalípticas recentes da ficção, principalmente o romance “A Estrada”, de Cormac McCarthy, e o blockbuster “Mad Max: Estrada da Fúria”. O quadrinho, porém, é singular principalmente pelos objetivos de seus protagonistas. As crianças são guiadas por seus instintos.
Elas procuram por alguém que saiba ler e possa desvendar as anotações do caderno que carregam. As dez páginas do álbum que reproduzem o texto indecifrável do pai dos meninos escancaram a existência tortuosa e incompreensível dos próprios garotos.
“A Terra dos Filhos” é um dos quadrinhos mais importantes lançados no Brasil em 2018 —e causou comoção entre quadrinistas brasileiros quando foi divulgado que haveria uma edição nacional.
A rispidez dos relacionamentos humanos incivilizados de “A Terra dos Filhos” ecoa nos diálogos primitivos e ignorantes de seus personagens e na arte rústica, com ares de rascunho, de seu autor. Para além do virtuosismo estético do álbum, o mérito maior de Gipi está na costura de texto e imagens em prol da eficácia narrativa de sua obra.
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