Descrição de chapéu

Jay-Z e Beyoncé se afirmam não só entre elites financeiras, mas também culturais

Com clipe no Louvre e disco surpresa, casal reivindica-se como os Carters, a realeza do pop

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Frame do clipe da música 'Apes**t', de Beyoncé e Jay-Z
Beyoncé e Jay-Z descem escadaria do Louvre, onde se perfilam os corpos de seus bailarinos, diante da ‘Vitória de Samotrácia’, no clipe de ‘Apeshit’ - Reprodução

Os Carters, mais conhecidos como Beyoncé e Jay-Z, foram ao maior museu do planeta fazer um acerto de contas. No Louvre, em Paris, se rebelam contra a indústria do entretenimento e se reafirmam como rei e rainha do pop.

Também dizem aos fãs que superaram as brigas de seu casamento e já fizeram as pazes, prontos para transformar seu amor em mais e mais dólares.

Lançado de surpresa no último fim de semana, "Apeshit", novo clipe da dupla e carro-chefe do álbum "Everything Is Love", foi rodado diante da "Mona Lisa" e outras obras do velho palácio da realeza convertido em templo da arte.

Não é de hoje que flertam com a ostentação. Eles fizeram da cultura visual em torno de suas músicas a apologia do "bling", estilo espalhafatoso associado ao rap, de cordões de ouro a chuvas de dinheiro.

Mas algo mudou. Enquanto os versos nada extraordinários de "Apeshit" —gíria americana das menos elegantes para uma espécie de surto de raiva ou êxtase— lembram os preceitos básicos da celebração da fortuna fácil que vem com a fama, o casal agora estremece o Louvre com a ideia de luxo quase como redenção.

 

O passeio das câmeras pelo museu flagra de relance os raros rostos negros em obras-primas do romantismo, mas os corpos da mesma cor do casal e seus bailarinos, lânguidos, não fogem aos holofotes.

Beyoncé e uma corrente de dançarinas rebolam de mãos dadas diante da "Coroação de Napoleão", de Jacques-Louis David. Elas também ressurgem deitadas na escadaria que leva à "Vitória de Samotrácia".

Seus corpos alinhados com os degraus sob a luz fria por um instante lembram cadáveres, como vítimas de uma chacina aguardando a autópsia, até se levantarem para dançar.

Quando canta diante da tela "A Balsa da Medusa", de Géricault, iluminado por luzes que lembram as de um carro de polícia, Jay-Z embaralha ideias de violência e ostentação, como se o corpo negro antes alvejado se transmutasse no do senhor do palácio.

No clipe, o spleen, a melancolia romântica vista em seu auge no museu parisiense, entra em colisão com a estética da era Black Lives Matter.

Nos versos da canção, Jay-Z desanca o Super Bowl, maior evento esportivo americano, lembrando a polêmica causada pela proibição de que seus atletas se ajoelhassem em campo na hora do hino nacional, denunciando a brutalidade policial contra os negros.

Enquanto isso, do lado de fora do Louvre, bailarinos negros aparecem alinhados e de joelhos na tomada seguinte.

Beyoncé, em músicas como "Formation", já foi mais sonora e agressiva em seu manifesto pela negritude. Mas, quando adentra essa arena quase sagrada do maior museu de arte do planeta, o casal parece reivindicar seu lugar ao sol não só entre elites financeiras mas também culturais.

Não é a primeira vez que eles usam as artes visuais como ilustrações de ideias ou mesmo só na condição de objetos de desejo, o velho "bling".

Jay-Z já gravou um vergonhoso clipe com a maior diva da performance, Marina Abramovic, e cantou sobre as obras de Picasso e Damien Hirst que decoram suas mansões. Beyoncé também copiou uma performance da videoartista suíça Pipilotti Rist no clipe de "Hold Up", em 2016.

Mas essa ida ao Louvre, que em tempos de marketing reagindo ao marketing despertou um agradecimento do governo francês, coroa a relação do casal com a história da arte, nem que ela seja arquitetada só para as câmeras.

Mestres da cultura visual de seus tempos, Beyoncé e Jay-Z, aqui ajudados pelo olhar do diretor Ricky Saiz e do coreógrafo Sidi Larbi Cherkaoui, vão à meca do que se consagrou como a arte do mundo dizer que estão à vontade ali.

Entram pela porta da frente, dançam e descansam sob o teto com pinturas emolduradas a ouro criadas para Luís 14 enquanto seus versos lembram Lamborghinis e jatinhos.

Mas o verdadeiro luxo está na apropriação que fazem dos símbolos da realeza e das obras encomendadas para celebrar momentos de grandeza. É como se afirmassem com todas as letras e volteios de quadril que também são os donos dessa fábrica de signos.

No fim do clipe, uma mulher penteia o cabelo crespo de um rapaz negro sentado sem camisa diante da "Mona Lisa", seu rosto tão indiferente quanto o da musa de Da Vinci. É um ataque à forma como os velhos mestres da arte exotizaram os corpos não brancos.

Esse é o corpo fora da história e da norma que os Carters acabam de levar, com um estrondo, ao centro do palácio.

 
 

O Louvre dos Carters

'Monalisa'

Beyoncé e Jay-Z em frente à "Monalisa". Frame de "Apes**t", clipe de Beyoncé e Jay-Z

 

A obra de Leonardo da Vinci é a mais recorrente no clipe. Na cena inicial, Beyoncé e Jay-Z miram a câmera ao lado da tela. O gesto foi interpretado como afirmação de que estão em pé de igualdade com a peça mais famosa do museu

'Vitória de Samotrácia'

Beyoncé em frente à obra "Vitória da Samotrácia". Frame de "Apes**t", clipe de Beyoncé e Jay-Z

A escultura do período helenístico (produzida entre 220 a.C. e 190 a.C.) representa a deusa Nice ou Niké (Vitória) e é imitada por Beyoncé, nas roupas brancas esvoaçantes, e pelas dançarinas. Seus movimentos fortes evocam o triunfo, como a estátua

'A Coroação de Napoleão'

Beyoncé e dançarinas em frente à obra "Coroação de Napoleão". Frame de "Apes**t", clipe de Beyoncé e Jay-Z

 

A pintura (1805-1807) de Jacques-Louis David fica atrás de Beyoncé e das bailarinas no clipe, como se a cantora retomasse seu poder diante do retrato da consagração do monarca, que, durante seu império, restabeleceu a escravidão nas colônias francesas

'Retrato de uma Negra'

"Retrato de Uma Negra". Frame de "Apes**t", clipe de Beyoncé e Jay-Z

 

A obra de Marie-Guillemine Benoist, de 1800, é uma das poucas do período neoclássico que mostram uma pessoa negra sem estereotipá-la ou vinculá-la à escravidão. No clipe, o seio direito da mulher, à mostra na pintura, não aparece, em uma crítica à exploração do corpo negro

'Discóbolo'

"Discóbolo". Frame de "Apes**t", clipe de Beyoncé e Jay-Z

 

A escultura do homem que arremessa um disco é uma das mais emblemáticas representações de um atleta na arte clássica. Sugeriu-se que a cena do clipe em que a obra aparece de relance, em contraste com imagens de homens negros ajoelhados, seria uma evocação de jogadores de futebol americano que, em 2017, se recusaram a ficar em pé durante o hino nacional, em protesto contra o racismo

'A Balsa da Medusa'

Jay-Z em frente à obra "Balsa da Medusa". Frame de "Apes**t", clipe de Beyoncé e Jay-Z

 

A pintura de Théodore Géricault, concluída em 1819, retrata o naufrágio de uma fragata na costa do Senegal, então colônia francesa, considerado um fracasso da monarquia dos Bourbon, em 1816. No vídeo, Jay-Z fica em frente ao quadro, contrapondo-se aos personagens negros da tela, representados de forma animalesca

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