Letrista João Cavalcanti retoma posse de sua obra em 'Garimpo'

Filho de Lenine grava canções cujas letras escreveu para outros músicos

O músico João Cavalcanti posa de pé, com os braços cruzados na altura do peito e sorrindo; ele é claro, tem cabelos curtos castanhos claros e usa barba. Veste uma camisa estampada com folhas beges em fundo branco e posa diante de um edifício rosado, em ruínas
O músico João Cavalcanti - Flora Pimentel/Divulgação
Luiz Fernando Vianna
Rio de Janeiro

João Cavalcanti diz não ter método para compor. Mas tem para não compor. Organiza numa pasta a lista de letras que está devendo. Estima em cerca de 30 os parceiros que lhe deram melodias e ainda aguardam versos.

A inadimplência se justifica: aos 38 anos, o filho de Lenine não é apenas o letrista carioca mais requisitado da sua geração mas um dos mais admirados por compositores de todas as gerações.

"Tenho sido muito procurado. É por gostarem do que eu escrevo e também por causa de uma oferta menor de letristas. Quando a gente pensa em quem praticamente só faz letras, o que vem à cabeça é aquele Olimpo: Paulo César Pinheiro, Aldir Blanc, Nei Lopes", afirma.

João vem dando passos para se aproximar de seus deuses. Está lançando o CD "Garimpo", em que canta acompanhado pelo pianista e acordeonista Marcelo Caldi. É letrista em 13 das 14 faixas. Só quatro são inéditas.

"Foi um processo de reintegração de posse. A maioria das canções tinha sido gravada por outros. Ninguém olhou para esse conjunto e disse: 'Todas são dele'. Estavam dispersas", explica.

O passo seguinte será realizar um CD quase todo de inéditas. "Sangrado", cuja produção ao lado do paulistano Tó Brandileone já começou, está previsto para 2019.

Entre seus parceiros estão músicos experientes como Zé Renato ("Domingos") e Mario Adnet ("Valsa de Baque Virado"). Para uma toada de Joyce Moreno, escreveu "Dia Lindo".

"Achei incrível ele abordar assuntos como velhice e morte sendo um cara tão jovem. E fez de uma maneira leve, desencanada. É um grande letrista, além de grande cantor e um artista de muito carisma no palco", exalta Joyce.

Com o uruguaio Jorge Drexler, João fez "Consumido", em espanhol. Com Pedro Luis fez "Indivídua", uma de suas composições mais conhecidas e na qual brinca com as palavras, sobretudo adjetivos, de forma original. O tango ganhou clipe com Camila Pitanga e direção de Alexandre Nero.

"Algo forte no que eu faço é a leitura fonética da melodia. Procuro preservar o que o melodista manda. E às vezes a letra está embutida", diz.

Sua bagagem literária tem mais romances do que poemas. Os primeiros escritores a impressioná-lo foram Kafka, Gabriel García Márquez e José Saramago. Na poesia, foi apresentado cedo a Augusto dos Anjos, obsessão da família paterna.

E também se politizou logo, reciclando o comunismo do pai de Lenine e o getulismo/brizolismo do lado materno.

O amor, tema hegemônico na canção popular, é só um dos seus assuntos. As letras podem falar de física e serem filosóficas, casos de "Pêndulo" (melodia de Cláudio Jorge) e "A Causa e o Pó", que Lenine já gravara e que agora o filho interpreta em duo com o português António Zambujo.

Ou serem crônicas divertidas, como "O Nego e Eu", sugerida pela cantora Roberta Sá e agora registrada por João. Ou exercícios trabalhosos: em "Não Sós" ele cita 64 lugares do Rio de Janeiro e os associa a 64 animais.

João pode falar de amor de forma elaborada e nada direta. É o que faz em "Garimpo", parceria com Antonia Adnet. "Quando Você Deixar", que não está no CD, é romântica, mas, ao concluí-la, percebeu que tinha feito para sua filha Luna, que tem síndrome de Down: "Não posso ficar para sempre com você/ Mas só vou quando você deixar".

"Ter três filhos me deu estofo, confiança e sensação de finitude. Eu andava com camisa do Botafogo na frente da torcida do Flamengo. Eu bebia e dirigia. É urgente não fazer isso. E fazer outras coisas."

Essa constatação contribuiu para que ele, após 16 anos, deixasse o grupo de samba Casuarina. "Não acreditava mais naquilo como projeto. Fui percebendo que eu sou, primeiramente, um veículo de mim mesmo. Ser intérprete numa banda que faz bailes e festas, que responde a uma dinâmica de público, não necessariamente do desejo íntimo do artista, acabou me levando para onde não queria ir", diz.

Sua decisão estremeceu a amizade com os quatro integrantes que ficaram. Mas ele acredita que, com o "distanciamento correto", todos entenderão que foi o melhor a fazer.

Gabriel Azevedo, seu ex-colega de grupo, concorda.

"Acabou sendo uma coisa positiva. Estávamos acomodados. A saída dele fez a gente se mover, pensar em caminhos novos. O que fica é a saudade, o carinho."

O Casuarina está lançando o CD "+100". Gabriel e João se encontram em eventos escolares, pois seus filhos estudam na mesma turma.

Relações fraternais pesam nesses caminhos profissionais. Marcelo Caldi, outra face de "Garimpo", conhece João desde os tempos de escola. Chegaram a jogar basquete juntos. O problema é que, se o amigo tem 1,87 m, Marcelinho, como é conhecido, tem 1,70 m.

Também criaram o conjunto Roda Gente quando Caldi fazia faculdade de música e João, de jornalismo. Agora estão juntos nos shows --o lançamento em São Paulo será em agosto-- e nas composições. Da dupla, o CD tem "Bem Melhor" e "Sercidade".

"É o momento de o João se afirmar no que ele sabe fazer melhor. Ele não se afirmava só como sambista", afirma Caldi.

Com os amigos Alfredo Del-Penho e Pedro Miranda ele participou da ressurreição da Lapa carioca. E, desde o ano passado, faz o Samba da Gávea, roda sem microfones com outros quatro músicos, num pequeno restaurante, e que estimula o trio a criar parcerias entre si.

Garimpo

  • Preço R$ 24,90
  • Autor João Cavalcanti e Marcelo Caldi
  • Gravadora MPB/Som Livre

Samba da Gávea

  • Quando Segundas, às 20h
  • Onde Da Casa da Táta, r. Professor Manoel Ferreira, nº 89 - Lojas N e O, Rio de Janeiro, tel. (21) 2511-0947
  • Preço R$ 30
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