Descrição de chapéu

'O Muro' reforça estereótipos que justamente pretendeu denunciar

Documentário tenta mostrar divisão política, mas desfila ideias mal concebidas e mal expostas

Rubens Valente

O Muro

  • Quando Nesta quarta (20), às 15h
  • Onde Exibição no CineSesc (r. Augusta, 2075, SP)

Há documentários que registram fatos de um ponto de vista privilegiado e tão próximo que é como se o espectador visse a história passar na sua frente. Exemplos espetaculares são "Ícaro" (2017), vencedor do Oscar deste ano, e "The Staircase" (2004-2018), que estreou há pouco no Netflix.

Outro tipo faz a reconstituição meticulosa de um evento de grande importância. Mesmo distantes dos fatos no tempo e no espaço, os cineastas fazem uma abordagem sofisticada do passado, que ilumina e interpreta história conhecida —a exemplo de obras-primas como "Shoah" (1985) e "O Ato de Matar" (2012).

"O Muro" (2018), de Lula Buarque de Hollanda, infelizmente não seguiu nem um caminho nem outro. Perdido entre as duas possibilidades, não consegue testemunhar nada relevante sobre o impeachment da presidente Dilma Rousseff e não traz reflexão inovadora sobre o assunto.

O filme pretendeu ser uma denúncia sobre a divisão política no país. Recorreu, porém, a uma fórmula arriscada. Encadeou inúmeros depoimentos contra e a favor do impeachment de Dilma e ouviu "especialistas" dos dois lados da disputa para nada concluir.

Jornalisticamente defensável, o processo acabou dando voz às mais tresloucadas opiniões e interpretações. São frases e sentimentos soltos, muitos nascidos do preconceito e da desinformação, que mesmo assim o filme decidiu ressaltar e, porque não dizer, legitimar ao lhes dar o espaço nobre de um documentário.

Um cientista político viu a "mídia manipulando essa situação para tirar a presidenta através do impeachment". Provas no filme? Nenhuma.

Outro revelou que "ninguém fica rico honestamente no Brasil, é um bando de ladrão". Um manifestante apareceu de Lula presidiário com a plaquinha "PT-13-171", números do partido (13) e do artigo do Código Penal para estelionato (171).

Um manifestante disse que "deram peixe para ele [pobre] mas ele não sabe pescar. [...] O pobre quer viver de Bolsa-Família". Outro segurou um cartaz em que o juiz Sergio Moro era apresentado como o genocida Adolf Hitler (1889-1945).

Aberrações assim são mostradas acriticamente em "O Muro", em um desfile de ideias mal concebidas e mal expostas. À direita e à esquerda.

A impressão que fica é que acabou reforçando os estereótipos que justamente pretendeu denunciar. O encadeamento das frases, adesivos e bonecos contra e a favor de Dilma e do PT nada mais é do que uma forma de obrigar a nós, telespectadores, a testemunhar durante 1h24 um "debate" típico de rede social.

Quem não aguenta passar cinco minutos nesses "fóruns de discussão" deveria ser forçado a 84 minutos de bombardeio? O filme acha que sim.

Ao fundo, uma trilha sonora de filme de terror, que finge encaminhar a narrativa para um clímax que, entretanto, nunca virá, pois ele acaba de forma anêmica e sem brilho.

O filme se torna mais confuso no terço final, quando apresenta imagens de passeatas a favor e contra o presidente dos EUA Donald Trump, o muro entre Israel e Palestina e o muro em Berlim durante a Guerra Fria (1945-91).

De que forma esses três eventos se articulam com o impeachment de Dilma? A frágil explicação —sociedades "divididas" ou algo assim— só indica que o filme forçou a barra atrás de possíveis paralelos que podem muito bem nem existir. Se existem, foram mal estabelecidos no filme.

"O Muro" representa um louvável esforço de denunciar o clima de divisão política no país. Mas os recursos e a abordagem que utiliza não são diferentes dos encontrados na internet, na imprensa, na TV, enfim, em qualquer lugar no qual uma pessoa busque informação.

Documentários são joias preciosas demais para serem desperdiçados como chuva no molhado.

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