Na história das artes e das ciências, não faltam tentativas de definir o que é o ser humano. Tais esforços nem sempre resultaram frutíferos; quando muito, questionaram se de fato existe uma natureza humana.
A diretora Bia Lessa, contudo, parece não ter medo de tomar parte nessa investigação —quem adaptou "Grande Sertão: Veredas" para o palco já demonstrou não se intimidar por tarefas grandiosas.
Em seu novo espetáculo, "Pi - Panorâmica Insana", como o título sugere, uma lente grande angular focaliza a humanidade. A imagem resultante é paradoxal: profunda e superficial; densa e despretensiosa; de objetividade quase científica, porém humana.
Os recursos usados nesse estudo artístico-filosófico são poucos, mas potentes. Entre milhares de peças de roupas espalhadas pelo espaço cênico completamente nu de um teatro em reforma, quatro atores (Cláudia Abreu, Leandra Leal, Rodrigo Pandolfo e Luiz Henrique Nogueira) representam pessoas anônimas.
Não há trama ou personagens propriamente ditas, apenas uma coleção de instantâneos capturados em tempos e espaços diversos. Em conjunto, luz e sonoplastia ora preenchem a imensa caixa cênica, ora sublinham o opressivo vazio ao redor dos intérpretes.
Em mãos poucos habilidosas, tais expedientes se esgotariam em seu impacto estético. Nesta encenação, seus significados se multiplicam graças à sutil progressão narrativa que perpassa a caótica dramaturgia apoiada em vários autores. Às vezes, a costura sugere um eixo temático —dinheiro, amor, sexo, religião, entre outros— para, em seguida, descortinar-se em caleidoscópio de informações e referências diversos.
A organização lógica é dispensada em prol de um percurso de afetos e memórias aleatórios, que evocam e acumulam pessoas, temas e ideias. Por vezes, é a ausência desses elementos, possível metáfora do vazio e da morte, o objeto da encenação.
Múltipla e repetitiva, a estrutura dramatúrgica adquire formato concêntrico, sugerido pela natureza circular e infinita do número pi. É um vórtice de dados brutos —nomes, números, estatísticas—, que sugere a produção e o consumo vertiginosos de informação, característicos da sociedade hiperconectada.
Assim, sob uma análise superficial, o espetáculo tende a um cruel relativismo; um voo rasante, aparentemente desprovido de sentimento, às vezes em flerte com o niilismo, que pode perturbar a plateia. No entanto, esse mesmo olhar desapaixonado é o responsável por conferir poesia à montagem.
Em cena, paradoxos se acumulam para uma representação possível, ainda que precária, do homem e da sua existência, paradoxais. O resultado é um espetáculo que simultaneamente se encarrega e se desobriga da hercúlea tarefa de abranger a multiplicidade humana. Empreitada tão insana quanto calcular os trilhões de dígitos contidos no número pi.
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