"Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta", célebre verso de Mário de Andrade, pode se aplicar a todo poeta que siga a sina de outrar-se na língua, assumindo uma multiplicidade das visões do mundo. "Trio Pagão", de Sérgio Medeiros, é uma realização intensa dessa poética das alteridades, sem cair no sentimentalismo ou na culpabilização simplória.
Dividido em três poemas longos, o livro pode também ser lido como três transformações em que o poeta funde e se desdobra em outras figuras humanas, literárias, animais, vegetais e minerais.
Assim lemos: "Observo o caráter humano das plantas...", "Observo o caráter humano das formigas...", "Observo o caráter humano dos grãos de areia...", "Observo o caráter humano desta rocha...", num ato que é também o de transformação de si e do que é outro.
Em "Esculturas de Caligrafias", Medeiros performa um trabalho delicado de caligrafia sem palavras. A partir de uma folha de papel dada pelo índio xavante Jerônimo Tsawé, realiza totens visuais enquanto grafa e rasura nomes importantes para o poeta, tais como Vicuña, Klein e Tunga.
É a mão desdobrada de Jerônimo que escreve pelo corpo de Medeiros uma não escrita simultaneamente indígena e vanguardista, numa transformação que nunca termina.
A homenagem é aqui tornar-se aquilo que não é, escrever a rasura, seguir na falta de semântica, numa recusa da identidade perfeita —o que se sugere é a partilha da assinatura Sérgio-Jerônimo.
A série de "Enrique Flor, o Novo", talvez a mais tocante do livro, narra um Bloomsday (16 de junho, dia em que se passa o "Ulysses" de James Joyce) na Irlanda, em que o poeta está com a mulher e o filho, fantasiado do dúplice personagem Henry Flower/Enrique Flor, alter ego de Leopold Bloom, protagonista do romance joyciano, um personagem capaz de fazer música para o acasalamento das plantas.
Ao mesmo tempo, no grande incêndio florestal que assolou Portugal em 2017, morre uma criança de quatro anos chamada Enrique Flor. A série é então um dia na vida, uma metamorfose literária, um desdobramento da morte infantil, uma reflexão sobre a crise ecológica que assola o planeta. Temos num só texto a elegia da perda do mundo e a proposição ética por um novo mundo, povoado de afetos.
No último poema, "[O] Rio Perdido", vemos monólogos com pontos de vista diferentes acerca de um rio que desaparece e um espaço praieiro afastado. No primeiro, a ausência de humanos é o que mais humaniza; no segundo é sua presença que se desdobra em animalidades, vegetalidades, mineralidades.
O rio perdido é um rio específico e é todo rio que se perde no espaço contemporâneo.
Nas últimas décadas, Sérgio Medeiros vem seguindo uma trajetória marcada pelo constante experimentalismo formal e por uma delicadeza ética cada vez mais profunda.
É precisamente isso que encontrarmos em "Trio Pagão", já indicado em epígrafes, tais como "Deixe a natureza ver", falsamente atribuída a Yves Klein; ou "Antes de ser contaminado el río desea ser escuchado", de Cecilia Vicuña.
Aqui, quem fala é o rio, quem vê é a natureza, quem faz é um personagem e um menino morto: o poeta medeia porque se transforma.
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