Nos seus 30 anos, a Cia. dos Atores rememora o passado. "Insetos", que o grupo carioca estreia neste fim de semana em São Paulo, revisita procedimentos que marcaram trabalhos do coletivo, remonta a peças anteriores e reprisa a parceria com o dramaturgo Jô Bilac, autor de "Conselho de Classe" (2014).
Mas o novo espetáculo é também um olhar para o presente. Em 12 quadros, faz do mundo diminuto dos insetos metáforas da sociedade contemporânea e suas mazelas.
No palco, o desaparecimento das abelhas é o estopim de guerras e desentendimentos. Surge ali um ditatorial louva-a-deus, que domina a todos. Entre os rebeldes, há baratas ativistas que terminam pisoteadas; já besouros soldados entram em crise existencial devido a seu trabalho violento.
Não há menções diretas, mas notam-se nas relações dos insetos referências a fatos recentes, como o fluxo de brasileiros deixando o país (os bichinhos fogem para Portugal), a intervenção militar no Rio e mesmo uma crítica à prefeitura de Marcelo Crivella (PRB).
"Achamos que, com a companhia fazendo 30 anos e nós com quase 50, seria um lugar interessante. Por que não abrir um pouco mais a janela e entender tudo o que está prestes a cair na nossa cabeça?", diz o ator Cesar Augusto.
"Esse é um dos nossos trabalhos mais políticos", continua o ator Marcelo Olinto. "No fundo, é para pensarmos como podemos conviver."
A exemplo de muitos trabalhos seus —como "Ensaio.Hamlet" (2004), versão da tragédia shakespeariana—, a companhia desconstruiu o texto de Bilac, originalmente quase um manifesto.
Durante a criação da peça, o grupo e o diretor Rodrigo Portella (de "Tom na Fazenda"), convidado para a montagem, modificavam e acrescentavam trechos, pinçando aqui e ali alusões a fatos recentes.
As diferenças foram ressaltadas na edição em livro de "Insetos" (editora Cobogó, 184 págs., R$ 40), com as duas versões, de Bilac e da trupe.
"O texto é um como um mosaico: plural e ao mesmo tempo de encaixes. A ideia é que, ao fim, o público possa juntar as cenas", afirma Olinto.
A cenografia, criada por Augusto e Beli Araújo, é outra colcha de retalhos. Feita de pneus, ela cria diversas estruturas, manipuladas pelo elenco, que vão de um resort a trincheiras de guerra e um lixão.
Uma estrutura que lembra "A Bao A Qu - Um Lance de Dados" (1990), baseado em obras de Jorge Luis Borges e Malarmé, um um dos primeiros trabalhos da Cia. dos Atores, de forte apelo formal.
"['Insetos'] tem um apelo físico. Ganhamos jovialidade fazendo essa peça", diz Augusto.
O reaproveitamento de materiais também está nas vestimentas dos atores, que utilizam peças de outros espetáculos e fogem da caracterização literal de insetos.
As capas dos cupins, por exemplo, vieram de "Ensaio.Hamlet"; já os sapatos da borboleta estavam em "Como Estou Hoje" (2013), explica Olinto, que assina o figurino.
A maleabilidade, dizem os atores, é o que explica a permanência do grupo, um dos mais longevos do país. As criações são sazonais —a última, "Conselho de Classe", foi feita quatro anos atrás— e os integrantes se dividem entre a companhia e outros trabalhos. "A paixão, na criação e no artístico, é um relacionamento aberto", comenta Augusto.
Também foi preciso flexibilidade para contornar as crises. Muitas vezes cogitou-se encerrar as atividades do grupo, como nas vésperas dos 25 anos da companhia.
A trupe vira a saída, um ano antes, de dois cofundadores, Enrique Diaz e Drica Moraes. Depois, em 2015, perdeu mais uma integrante, Bel Garcia, morta de câncer aos 48.
Hoje permanecem, além de Olinto e Augusto, Gustavo Gasparani, Marcelo Valle e Susana Ribeiro. "É de uma forma muito orgânica que a companhia sobrevive", afirma Olinto.
Uma dessas maneiras é a manutenção de sua sede, aberta em 2006 no bairro carioca da Lapa e usada para ensaio e encenação de peças.
O local, chamado Sede das Cias., também abrigou durante um tempo a Pangeia Cia. de Teatro e o grupo Os Desequilibrados. Este contava com uma verba da Petrobras para a manutenção do espaço, mas o patrocínio acabou, e hoje a administração fica toda a cargo da Cia. dos Atores.
Para reduzir gastos de manutenção e não perder o caráter de espaço cultural, a companhia reduziu o número de peças em cartaz (hoje são apenas duas), mas estendeu a temporada de cada uma, diz Cesar. "Somos que nem insetos, vamos nos adaptando."
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