Descrição de chapéu Artes Cênicas

Artistas recorrem a fábula e absurdo para retratar caos contemporâneo

Após decepções políticas e sociais, produções teatrais se voltam a alegorias dos problemas do mundo

Da esq. para a dir.: Cesar Augusto, Marcelo Olinto, Susana Ribeiro e Marcelo Valle, da Cia dos Atores, na peça

Da esq. para a dir.: Cesar Augusto, Marcelo Olinto, Susana Ribeiro e Marcelo Valle, da Cia dos Atores, na peça "Insetos", texto de Jô Bilac com direção de Rodrigo Portella Elisa Mendes/Divulgação

Maria Luísa Barsanelli
São Paulo

De tão espantosa, a realidade do mundo contemporâneo não caberia numa representação realista. Seria preciso um escape, uma alegoria para dar conta de tudo.

É de certa forma esse o movimento de algumas produções teatrais recentes, que buscam entender o mundo de hoje —com suas crises e ascensões de ideologias extremistas— por meio de uma linguagem fabular, próxima do absurdo ou do escapismo.

"É como se a gente vivesse um momento de quebra de paradigma discursivo mesmo", diz Alexandre Dal Farra, autor e diretor de "Refúgio".

No espetáculo, o encenador espelha a falta de compreensão da sociedade atual com uma metáfora irrealista: um ambiente do qual todos desaparecem, sem explicações.

Carla Zanini (esq.), Clayton Mariano, Fabiana Gugli e André Capuano no espetáculo "Refúgio", de Alexandre Dal Farra - Lenise Pinheiro/Folhapress

"Talvez só o nonsense possa abarcar um pouquinho a realidade. Qualquer tentativa de compreensão dela está fadada a um recorte estreito, não abrange a complexidade de discursos", afirma o dramaturgo Victor Nóvoa, autor de "Insones", espetáculo que discute a bomba de estímulos da vida contemporânea.

Para tanto, ele cria personagens que não dormem há um ano. Suas ações e gestos são descolados de suas falas, como se houvesse uma cisão entre o que se diz e o que se faz.

Segundo o dramaturgo Jô Bilac, os artistas estão "conectados nesse caos numa tentativa de entender o seu lugar nisso tudo". O autor assina "Insetos", da Cia. dos Atores, em que faz do mundo diminuto dos bichinhos uma metáfora da sociedade, com suas guerras e desigualdades.

A busca pelo nonsense e pelo surreal em muitos momentos foi fomentada por crises sociais. O chamado teatro do absurdo, termo cunhado pelo crítico Martin Esslin em 1961, estava envolto no clima de desolamento do pós-Guerra.

Essa "sensação de angústia metafísica pelo absurdo da condição humana", como definiu Esslin, surge em peças de nomes como Samuel Beckett, Eugène Ionesco e Jean Genet. A linguagem fica em segundo plano, dando espaço para imagens e para a poesia.

Realidades opressivas ainda levaram, na América Latina, a obras do realismo mágico —no Brasil, há exemplos como a teledramaturgia de Dias Gomes em "Saramandaia" (1976), embebida no contexto da ditadura militar.

Paulo Arcuri (esq.), Fernanda Raquel, Helena Cardoso e Vinícius Meloni durante ensaio de "Insones" - Lenise Pinheiro/Folhapress.

Atualmente, no país, haveria em especial uma desolação com os partidos de esquerda, na opinião de Dal Farra.

"O lulismo uniu muito a esquerda. Quando ele naufragou, todo mundo ficou sem eira nem beira. Essa crise de discurso, de posicionamento, tem a ver com o fim de uma era, do lulismo, do governo Obama nos EUA. Voltou à tona a barbárie total como era no começo do século passado."

Se no último ano o debate identitário (as questões do negro, da mulher, de indígenas, de transexuais) ganhou peso nos espetáculos e nos encontros teatrais, agora parece buscar-se também uma abrangência comunitária, um denominador comum entre os diversos indivíduos da sociedade.

"Para mim ficou muito complicado discutir o indivíduo isolado do seu meio", diz Bilac. "Talvez por isso eu não faça análise por meio de Freud, que fala sempre do indivíduo a partir do seio familiar", brinca.

Bilac também é um dos autores de "Pi - Panorâmica Insana", espetáculo dirigido por Bia Lessa e que, em um mosaico de quadros independentes (por vezes pouco realistas, só compostos de números ou de danças), busca entender o mundo em que vivemos. Tudo feito num cenário de 11 mil peças de roupa, dispostas desordenadamente no palco.

Para Lessa, a linguagem caótica e desconstruída é um grito político, "quase um vômito". "Estamos num momento gravíssimo, em que não dá para só estar em reflexão, a gente tem que estar em ação. Tem algo muito importante em jogo, no Brasil e no mundo, a ascensão do reacionarismo."

"Num mundo caótico, acho que a grande dificuldade é não se sentir paralisado", diz o dramaturgo Leonardo Cortez. Em seu "Pousada Refúgio", no qual também atua, ele cria uma alegoria sobre a decepção com os problemas atuais e a vontade de fugir de tudo.

"Eu vivi muito essa crise, a crise do Brasil foi minha crise como dramaturgo. Eu sentia que eu precisava escrever algo, retratar esse tempo, mas ao mesmo tempo estava muito travado em fazer isso."

Dal Farra acredita que as mudanças tiveram uma outra influência: um maior encontro entre dramaturgos, a partir de projetos recentes, algo que não ocorria antes.

"Não estamos conseguindo abarcar a realidade com os instrumentos que tínhamos. Todo mundo está um pouco perplexo, e acho isso bom. As pessoas deixaram um pouco para trás as suas explicações e certezas sobre as coisas."

Atores Maurício de Barros (esq.), Daniel Dottori, Leonardo Cortez, Gláucia Libertini e Tatiana Thomé em "Pousada Refúgio" - Lenise Pinheiro/Folhapress

Com a linguagem metafórica, o retorno do público tem sido grande, dizem os artistas. "Mais do que em outras peças, os espectadores querem conversar depois", comenta Lessa. "É como se a discussão permanecesse num eco."

Na opinião de Bilac, a alusão e o absurdo dão ferramentas ao público, que se identifica e faz analogias sem que elas sejam entregues de bandeja.

"A realidade está tão espantosa que qualquer reprodução dela fica aquém. A metáfora nos resgata um espanto e uma estranheza, que a gente já perdeu, para coisas com que a gente já se acostumou."

Para Nóvoa, é preciso tocar na sensibilidade do público para que a mensagem perdure. "Hoje estamos tão inundados de discursos, de estímulos, precisamos parar um pouco. É como diz a primeira fala de 'Esperando Godot' [de Beckett]: 'Nada a fazer'."

 

Peças para entender o mundo (ou não)


Insetos

O espetáculo celebra os 30 anos da Cia. dos Atores, aqui dirigida por Rodrigo Portella (de 'Tom na Fazenda'). O texto de Jô Bilac é composto de 12 quadros tragicômicos em que insetos aludem aos problemas sociais

Centro Cultural Banco do Brasil, r. Álvares Penteado, 112. Qua. a sáb. e seg.: 20h. Dom.: 18h. Até 20/8. Ingr.: R$ 20. 14 anos


Insones

Dirigido por Kiko Marques, o texto de Victor Nóvoa retrata quatro personagens que não dormem há 365 dias —um debate sobre a bomba de estímulos e a velocidade da vida contemporânea

Teatro Sérgio Cardoso, r. Rui Barbosa, 153. Qua. e qui., às 20h. De 1º a 23/8. Ingr.: R$ 5 a 20


Pi - Panorâmica Insana

Bia Lessa dirige Cláudia Abreu, Leandra Leal, Luiz Henrique Nogueira e Rodrigo Pandolfo num mosaico de cenas sobre o mundo atual. Júlia Spadaccini, Jô Bilac e André Sant'anna assinam os textos

Teatro Novo, r. Domingos de Moraes, 348. Sex. e sáb., às 21h, dom., às 18h. Até 29/7. Ingr.: R$ 50 a R$ 70. 16 anos


Pousada Refúgio

A peça de Leonardo Cortez, dirigida por Pedro Granato, mostra amigos que planejam uma pousada em Gonçalves (MG). Mas o empreendimento é na verdade um reflexo de seu descontentamento e sua vontade de escape

Teatro Vivo. Av. Dr. Chucri Zaidan, 2460. Ter., às 20h. Reestreia em 7/8. Até 18/9. Ingr.: R$ 40. 14 anos


Refúgio

Alexandre Dal Farra espelha nossa falta de compreensão do mudo atual num ambiente estranho, onde as pessoas desaparecem sem motivo aparente

Sesc Bom Retiro, al. Nothmann, 185. Sex. e sáb., às 21h, dom., às 18h. Até 29/7. Ingr.: R$ 9 a R$ 30. 14 anos

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