Descrição de chapéu Flip

Bíblia mais antiga que sobreviveu pesa 40 kg, revela Sherlock dos manuscritos

Christopher de Hamel disseca 12 peças medievais em 'Manuscritos Notáveis', que divulga na Flip

Codex Amiatinus

Trecho do Codex Amiatinus, guardado na Biblioteca Medicea Laurenziana, em Florença Reprodução

Anna Virginia Balloussier
Paraty

O “Livro de Kells” está para o mundo dos manuscritos como Mick Jagger para as estrelas do rock. Christopher de Hamel reconhece isso. Mas ele não consegue ter sua satisfação.

Encrenca com uma página do compêndio feito por monges celtas no século 9º com os quatro evangelhos do Novo Testamento —quiçá “a mais antiga representação da Virgem e o Menino na arte europeia”, Maria e Jesus na presença de quatro anjos. 

“Em consequência do que vou dizer agora, acho que terei revogada para sempre minha licença de visitar a Irlanda, mas a figura é abominável”, escreve em “Manuscritos Notáveis”.

Por onde começar? “A cabeça de Maria é grande demais para seu corpo, [...] seus seios caídos são visíveis através à esquerda. O bebê é grotesco e detestável, com cabelos revoltos avermelhados que mais parecem alga.”

Tido como o maior dos especialistas nesses textos medievais escritos à mão, com 25 anos catalogando obras do tipo na casa de leilão Sotheby’s, o londrino veio ao Brasil por um motivo nobre. “Meu filho vai se casar com uma brasileira em Belo Horizonte.”

De quebra, tem a Flip, da qual participa na quinta (26) para falar sobre seu livro, uma “entrevista” (palavras dele) com 12 manuscritos que vão do século 6º (o Evangelho de Santo Agostinho) até o século 16 (as “Horas de Spinola”).

Todos livros de peso, literalmente inclusive: do século 8º, o Codex Amiatinus, “a mais antiga Bíblia latina que sobreviveu”, tem cerca de 40 kg, “o peso de uma cadela dinamarquesa adulta”, como sugeriu um arqueólogo estimado por Hamel.

O escritor Christopher de Hamel em Paraty nesta quarta (25); ele participa da Flip - Keiny Andrade/Folhapress

O latim é uma língua amiga desde menino. O autor conta que optou por estudá-la “não porque tivesse uma aptidão particular para essa língua (eu não tinha), mas porque eu era, em geral, pior em quase todas as outras coisas”.

Foi em um colégio estadual da Nova Zelândia, onde adolesceu, que aprendeu latim via “Carmina Burana”, em versão musicada por Carl Orff (1895‑1982).

“Essa música era para nós uma sedutora evocação de estudantes medievais anárquicos e amorosos vagabundeando em versos pelo século 12 na Europa, com um éthos de espírito livre muito parecido com o de meados da década de 1960”, diz o autor, que dedica um capítulo a um manuscrito da obra.

Difícil para a “geração Google” entender seu amor por títulos fabricados antes da popularização da máquina de imprensa de Johannes Gutenberg (1398-1468).

Mas, para o especialista já comparado a um Sherlock Holmes de seu meio, manuscritos não são apenas um amontoado de letrinhas: são obras de arte, e cada uma com sua impressão digital.

Afinal, trilharam todas caminhos únicos, do momento de sua confecção até o destino atual —sobretudo arquivos inacessíveis a “mortais”, sob cuidado de guardiões como uma que Hamel descreve como a “santa” que o empanturrou com “chocolates russos com sabor de uísque” enquanto ele trabalhava.

Os artesãos dessas obras “achavam que o mundo ia durar para sempre e faziam coisas para serem eternas”, diz à Folha na casa da Companhia das Letras na Flip.

O resultado, para ele, é um híbrido entre literatura e arte que vale mais do que qualquer pintura. “Quadros você pendura na parede, mostra para amigos. Livros são tridimensionais, você tem que se esforçar para tirar da estante e ler, quase sempre em privado, em sua biblioteca”. 

Elementar, meu caro Hamel.

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