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'Caderno de Memórias Coloniais' nos atinge tanto no intelecto quanto no físico

Não é somente o tema que torna o livro fascinante, mas o modo como Isabela Figueiredo o trata

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Leyla Perrone-Moisés

Caderno de Memórias Coloniais

  • Preço R$ 49,90 (184 págs.)
  • Autoria Isabela Figueiredo
  • Editora Todavia

Este é um livro notável, e como tal já tem sido reconhecido e premiado. Já era mais do que tempo de ser editado no Brasil. É um livro que se começa a ler e não se consegue largar, por tudo o que ele nos oferece.

Um assunto relevante: os últimos anos e o fim da colonização portuguesa em Moçambique, narrado por uma filha de colonos ali nascida e de lá "retornada" à metrópole, após a revolução de 1974.

Um testemunho? Sim, mas um testemunho muito particular, redigido anos mais tarde por uma escritora talentosa. O tema é ainda atual, do ponto de vista histórico e ideológico. As iniquidades do colonialismo, os sofrimentos de todos aqueles que o vivenciaram, os crimes provocados pelo racismo e pela exploração do negro, tudo isso é conhecido e suas consequências ainda são visíveis nas metrópoles e nas colônias, mesmo naquelas mais antigas como o Brasil.

Não é apenas o tema que torna esse livro fascinante, mas o modo como a escritora o trata. A narradora é dotada de uma voz poderosa, capaz de revelar aspectos que a narrativa histórica não consegue captar, e de comover o leitor de modo mais direto e profundo do que qualquer discurso político.

Ela narra suas experiências num estilo despojado, sintético e muitas vezes elíptico, que nos atinge tanto no intelecto quanto no físico. Os fatos narrados não são apenas aqueles vividos e observados por uma menina atenta, mas estão intimamente imbricados nas experiências de seu corpo nascido e criado na terra africana, de sua sexualidade e de seus sentimentos, moldados e violentados pelas circunstâncias da colonização.

É a narrativa de uma guerra geopolítica, mas também de uma guerra travada com ela mesma. Criada num ambiente de ideologia racista e colonialista, a menina se desgarra da família pela experiência sensual de "branca-negra" e pela consciência precoce das injustiças presenciadas.

Incumbida de levar a Portugal a verdade dos brancos, isto é, as atrocidades cometidas contra eles pelos negros no momento da descolonização, ela carrega em sua memória os abusos anteriores dos brancos, que desmente a "história da carochinha" da colonização "branda" portuguesa.

A verdade terrível dos fatos, que ela conhece e nos transmite, é intercalada com breves e luminosas descrições da terra africana, com a evocação dos olhares e sorrisos trocados pela menina branca com os negrinhos miseráveis, que se reconhecem como iguais mas não podem se relacionar. A grandeza dessa narrativa vem da equanimidade da narradora: "Todos os lados possuem uma verdade indesmentível. [...] Há vítimas-vítimas e vítimas-culpadas. Entre as vítimas há carrascos".

O bem e o mal estão misturados, e o pai é a principal evidência disso. Imbuído de uma ideologia desumana, explorador brutal do trabalho dos negros, esse pai é também aquele que transmite à filha a sensualidade e o amor à vida. O pai machista é o mesmo que a aconselha a estudar, a ter uma profissão e a viver sua vida "sem depender de nenhum homem".

Tem sido dito que este é um livro de amor e de ódio. Não concordo com essa leitura. Este é um livro de revolta e de recusa, não um livro de ódio. Intimamente ligada ao pai pelo corpo e pelo afeto, ela se torna sua "inimiga" pela escuta de seu discurso falso, pela observação da realidade, pelo acesso à leitura e à escrita.

Um livro como este pode ser, e já tem sido, cooptado como documento ilustrativo de estudos culturais fundamentados em causas de gênero e de raça. Mas ele não é apenas documento ou tese preconcebida a serviço de uma causa. Ele é sobretudo uma demonstração de que o encontro do tom justo e das palavras certas a que chamamos literatura serve à justiça por outro caminho, igualmente poderoso e mais próximo da verdade.

Leyla Perrone-Moisés
Doutora em língua e literatura francesa, é professora emérita da FFLCH-USP
 

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