Cota para filmes brasileiros no streaming é fundamental, diz Walter Salles

Para cineasta, rapidez da degradação do país é comparável à da era Collor

Cineasta carioca Walter Salles, diretor de ‘Central do Brasil’, que completa 20 anos em 2018 -  Fernando Young/Divulgação
INÁCIO ARAUJO
Bolonha

Quase sempre ausente do Ritrovato (mostra italiana dedicada a exibir obras restauradas), o Brasil chegou neste ano com dois restauros fortes e capazes de suscitar interesse, os de "Pixote" (1981) e "Central do Brasil" (1998).

Mais: contou com a presença de Walter Salles Jr., 62, que pode não ser um pop star como Martin Scorsese (este exibiu filmes que fez e recuperou), mas tem diversos fãs a lhe pedir selfies por ali.

Seu "Central" completa 20 anos e vê-lo hoje é quase irônico. O filme mira um país que se purificava de um passado de ditadura, hiperinflação e deterioração moral. Nesse sentido, voltamos a zero, talvez um pouco menos.

O filme, no entanto, continua vivo e se beneficia do belo restauro. Revisto hoje, algumas características aparecem com mais evidência, como o caráter de melodrama social à maneira de De Sica.

Mais ainda, visto em relação ao conjunto da obra de Salles, parece claro que seus melhores filmes tratam de personagens sem lugar. Por escolha ou fatalidade estão sempre distantes de um ponto fixo que norteia suas vidas. Buscam algo. Pode ser o pai, como em "Central", uma ideia, a si mesmo: importa que são personagens cujo único destino consiste em caminhar em busca do que seja ou do que pense ser seu destino.

O filme, que venceu o Urso de Ouro em Berlim e o Urso de Prata de atriz (Fernanda Montenegro), foi restaurado com apoio do Centro Nacional de Cinematografia francês e da coprodutora MACT. A cópia será exibida no segundo semestre na França e no Brasil.

Em Bolonha para o Ritrovato (que foi até 1º/7), o cineasta falou à Folha sobre seus filmes, a renovação do cinema brasileiro a partir de estados como Minas e Pernambuco e o debate sobre novas regras para a produção nacional.

"A cota de tela no streaming é fundamental. Considero a regulamentação do Estado absolutamente necessária —e não só no cinema."

 

1998, esperança de um país que se limpava. 2018, sujeira para todo lado. Como você vê nosso caminho como sociedade e como acredita ser possível representá-la?

"Central" foi lançado em 1998, mas a ideia do filme tomou corpo pouco antes de rodarmos "Terra Estrangeira," em 1995, ainda sob o impacto do desgoverno Collor. Além do caos econômico, o país vivia uma profunda crise de identidade, e a produção cinematográfica tinha caído a zero.

O recomeço do cinema, naquele momento, foi marcado pelo desejo de reencontrar um reflexo brasileiro na tela, de dar voz a um não dito que estava represado. As cartas que pontuam o filme respondem a essa percepção. A busca de Josué pelo pai é também a busca por um país. Já a trajetória de Dora no filme é claramente um processo de ressenssibilização, após 25 anos de ditadura militar e dos anos Collor.

Hoje, como o próprio governo propaga, andamos 20 anos em 2. Só que para trás. Considero o governo atual um desastre comparável ao de Collor. Representar esse momento na ficção é uma tarefa complexa, tal a rapidez da degradação. É um tempo mais propício aos registros urgentes, documentais.

Como vê a memória cinematográfica no Brasil, em meio à longa crise na Cinemateca, a paralisação de restauros e o aparente desinteresse oficial pela cultura?

A Cinemateca Brasileira foi considerada uma das cinco melhores do mundo, pouco antes da intervenção que a paralisou. Destruir um centro de excelência desse foi um gesto absurdo, que permanece mal explicado até hoje. Ele é revelador, por outro lado, de como aqueles que governam o país desprezam a nossa memória cultural.

Vejo surgirem cineastas fortes em estados como Minas, Rio, Pernambuco, além do Distrito Federal. Mas as salas estão quase todas para super-heróis. Filmes empenhados —brasileiros ou não— raramente passam de 30 mil espectadores. Como o cinema nacional pode sobreviver em salas?

A geração de cineastas de Pernambuco e Minas é extremamente talentosa, e há jovens realizadores de outros pontos do país emergindo com igual vigor. Seus filmes estão se confrontando com um mercado cada vez mais imprevisível. A distribuição digital diminuiu a vida útil de um filme. Não há mais tempo para o boca a boca que mantinha filmes em cartaz. Tocando num simples botão, elimina-se sessões de um filme, o que não acontecia com as cópias em 35 mm.

Países como a França regulamentam a exibição de forma a defender a produção nacional, em diversas frentes. Há muito o que aprender com eles.

Esse tema se torna ainda mais complexo porque ocorre em meio a um terremoto tecnológico, que muda radicalmente a forma de ver e realizar imagens. A tendência na internet é a de concentração de poder jamais vista no audiovisual, com poucas empresas supranacionais agindo como bem entendem. Não é só a distribuição de imagens que está em risco.

Há uma questão em voga: cota de tela no streaming. Como a TV paga parece tender ao declínio, o que vê como caminho legal apropriado ao país?

A cota de tela no streaming é fundamental. Considero a regulamentação do Estado absolutamente necessária —e não só no cinema. O "laissez faire, laissez passer" significaria o fim da atividade audiovisual no Brasil.

O surgimento das minisséries independentes brasileiras, assim como o de dezenas de programas infantis ou documentários de qualidade, são decorrência direta das cotas para o produto audiovisual brasileiro na TV a cabo, criadas pela Ancine na presidência de Manoel Rangel. A abertura de mercado foi determinante.

Vejo-te na prática como uma embaixador do cinema do país no mundo. Quem mais faz essa função? Há representação oficial no exterior como nos tempos da Embrafilme?

Quem melhor representa o cinema brasileiros são aqueles filmes e cineastas que, por meio dos festivais e das salas de cinema, falam de quem nós somos, e para onde estamos indo. Kleber Mendonça Filho, Karim Aïnouz, Gabriel Mascaro, Eryk Rocha, Marcelo Gomes, são alguns desses cineastas.

Continuo achando o cinema um instrumento potente de desvendamento do mundo. E, também, revelador de nosso passado. Rever "Pixote" aqui no Ritrovato foi uma experiência marcante. O filme fala de problemas estruturais que nos perseguem até hoje. É tão atual agora quanto em 1981, quando foi filmado.

Kleber Mendonça Filho está com problemas nas contas de "O Som ao Redor" por algo que alguns dizem ser uma retaliação a suas posições políticas. Como avalia a situação dele?

Penso que "O Som ao Redor" é o filme mais importante realizado no Brasil nos últimos dez anos. Abriu novas fronteiras para nossa cinematografia, renovou o interesse do público interno e externo pelos nossos filmes. Quando esse tipo de reconhecimento ocorre, toda a cinematografia brasileira é beneficiada.

O filme foi feito por uma fração do custo de longa de baixo orçamento europeu. Quando a produtora redimensionou o orçamento, o fez consultando a Ancine. O questionamento que atinge o filme e seu diretor pode dificilmente ser dissociado de razões políticas. Estrábicas, no meu entender.

Vale lembrar que a relação entre o cinema e o poder nunca foi amena. O primeiro existe para questionar, ampliar nosso conhecimento do mundo. Estamos no Festival de Bolonha, no país em que Mussolini reagiu à "Obsessão", de Visconti, dizendo: "Isso não é a Itália". Censurou o filme —em vão. Surgiam ali as raízes do neorrealismo italiano, movimento que Scorsese considera o mais influente no cinema até hoje.

O que você está produzindo?

Após o documentário sobre Jia Zhang-ke, "Um Homem de Fenyang", o desejo de mergulhar na ficção volta fortemente. Comecei a trabalhar num roteiro sobre os anos 1970 no Brasil, a partir de um livro belíssimo de Marcelo Rubens Paiva sobre a mãe dele, "Ainda Estou Aqui". O projeto está sendo desenvolvido com o roteirista Murilo Hauser, que escreveu o último filme de Karim Aïnouz. É uma história em que a memória pessoal e a memória coletiva se fundem, um tema que sempre me interessou.


Walter Salles, 62

Nascido no Rio de Janeiro em 12 de abril de 1956, o cineasta é filho do casal Elisa e Walther Moreira Salles, fundador do Unibanco. Dirigiu longas como "Diários de Motocicleta" (2004), "Linha de Passe" (2008) e "Na Estrada" (2012), que disputaram a Palma de Ouro em Cannes

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