Diretor cria contexto do romance entre Eduardo e Mônica para levar canção ao cinema

Após 'Faroeste Caboclo', René Sampaio adapta música mais solar da Legião Urbana

Rubens Valente
Brasília

O que uma história de amor aparentemente simples, ambientada nos analógicos anos 1980, poderia dizer à plateia conectada de 2018, quando o Brasil enfrenta desafios políticos e sociais? Para os realizadores de “Eduardo e Mônica”, filme inspirado na letra de Renato Russo (1960-1996), ícone da banda de rock Legião Urbana, muito.

“É a música mais solar da Legião. Mas coloca de maneira leve algo que é muito delicado, que é conviver com o diferente. São dois grandes personagens que vivem essas diferenças particulares. Isso, no momento em que estamos vivendo, no Brasil e no mundo, é um tema fundamental”, diz o cineasta René Sampaio, 42.

O romance entre o adolescente de 16 anos que jogava futebol de botão com o avô e a estudante de medicina ligada a arte, magia e meditação será a segunda música de Renato Russo adaptada por Sampaio. “Faroeste Caboclo” (2013) atraiu cerca de 1,5 milhão de espectadores.

Sampaio trabalha agora em um tema sem tiros e torturas. As filmagens começaram em junho em Brasília. Com um orçamento de R$ 10 milhões, o diretor enfrentará o desafio de tornar interessante uma música de poucas reviravoltas. 

Para isso, a equipe de roteiro teve que “dar um contexto” em torno de Mônica, que será interpretada pela atriz Alice Braga, e de Eduardo, vivido por Gabriel Leone.

O roteiro é trancado a sete chaves, mas escapam alguns detalhes: Eduardo é neto de um militar, enquanto o pai de Mônica é um exilado de esquerda cassado pela ditadura. 

Ao que tudo indica, as diferenças, que não impedirão um longo relacionamento, serão um pouco mais profundas do que as descritas na música.

Os contrastes continuam na cenografia. A casa-ateliê de Mônica, de 400 metros quadrados, na qual serão feitas cerca de 15% das filmagens, foi montada em detalhes da época no galpão de uma estação de energia elétrica abandonada em Brasília. 

A produção teve que construir um mezanino e duas escadas, além de quebrar paredes e abrir portas. Em contrapartida, o quarto de Eduardo na pequena casa de seu pai, na Vila Militar, será um cubículo.

“Mônica é o mundo amplo, das artes, enquanto Eduardo vive no seu mundinho, num quarto pequeno, antes de conhecê-la. A ideia é fazer esses pontos de antagonismo. Como duas pessoas, em ambientes tão diferentes, podem ter um relacionamento?”, explica o diretor de arte Tiago Marques Teixeira, que trabalhou em “Tropa de Elite 2”, “Narcos” e “Getúlio”.

Renato Russo compôs “Eduardo e Mônica” no início dos anos 1980, numa fase de sua carreira conhecida como Trovador Solitário, na qual cantava e tocava violão sozinho, durante um hiato entre as bandas Aborto Elétrico e Legião. Depois foi incluída no álbum “Dois” (1986), da Legião, e estourou nas rádios. 

Há consenso entre amigos do compositor de que Eduardo e Mônica nunca existiram, sendo uma junção de diversas pessoas que Renato conheceu, entre as quais a artista plástica Leonice Coimbra e seu marido, Fernando.

Também não se sabe como Renato escolheu os nomes. Como Renato via muitos filmes de Ingmar Bergman (1918-2007), há quem veja possível referência a “Monika e o Desejo”, de 1953. Renato era apaixonado por cinema e chegou a criar grupo de amigos apelidado de Asa (Amantes da Sétima Arte).

A letra da música não ajuda muito para um roteiro. Não há reviravoltas nem acontecimentos marcantes, com exceção de algumas brigas e de uma “barra mais pesada que tiveram”, que não é detalhada na letra, mas poderia ser algum problema financeiro.

Segundo René Sampaio, o roteiro teve que construir situações que não estão na letra, mas a essência foi respeitada. 

 

“A gente tem que ser fiel ao espírito da música mas também ao que o cinema pede ao se contar uma história. O melhor que se pode fazer pela música é fazer um filme que lide com cinematografia, com drama, com as peripécias que um filme precisa ter para que aconteça. Você tem que ter as liberdades e buscar o que é melhor para esse outro meio.”

O ator Gabriel Leone, que se disse fanzaço da Legião mesmo antes de integrar o elenco, concorda. “Se você conta só a história que está na música, faz apenas um videoclipe. [...] A gente se preocupou em ir para a essência do que o Renato está cantando. O que ele quis dizer com isso, não exatamente o que a gente escuta, mas o que está por trás.”

Para Alice Braga, as músicas da Legião “ainda valem para hoje, falam de política, do ser humano, de solidão, do amor, mas não de forma rasa, é muito autoral, visceral.”

Os atores entendem que um dos trunfos da produção foi manter a trama no ambiente dos anos 1980, o que pode permitir uma abordagem mais intimista. Não havia, por exemplo, durante o relacionamento dos casais da época, a atual urgência dos celulares e das redes sociais.

“O ritmo da vida na década de 1980 era outro. Hoje você acessa fácil as pessoas. Acho que o fato de não trazer a história para os tempos atuais potencializa o tempo interno dos personagens, o tempo do relacionamento”, conta Alice.

“Tem um charme contar essa história nos anos 1980. O drama [amoroso] é o mesmo, isso não muda. Só as ferramentas mudam. Naquela época se esperava um telefonema, hoje é uma mensagem de celular. Mas você está ansioso para ver o que vai acontecer no relacionamento, se vai dar certo ou não. O frio na barriga é o mesmo”, diz Sampaio.

Para o diretor, que é brasiliense, o filme é uma oportunidade de falar de uma Brasília diferente da que os brasileiros estão acostumados a ver na televisão. O longa não trará a Brasília do Congresso Nacional, dos ministérios e dos escândalos políticos, mas procura indicar como ela afeta e molda seus moradores. 

Além disso, ao longo desses anos, os fãs da Legião e de Renato Russo se renovam em diferentes faixas etárias, comenta Bianca de Felippes, da Gávea Filmes, coprodutora ao lado de Barry Company e Fogo Cerrado. 

Bianca também produz, há dois anos, a peça “Renato Russo - O Musical”, dirigida por Mauro Mendonça Filho. Ela estreou há mais de 13 anos e vem sendo reencenada em diversas partes do país. “Temos teatro lotado nesses anos todos, o que mostra a força do Renato Russo entre gerações diferentes”, conta Bianca.

“A molecada ouve e as músicas continuam caindo em provas de escola. Ele escreveu sobre uma realidade dos anos 1980 e as pessoas continuam gritando ‘Que país é este?’”, diz Gabriel Leone.
“Mesmo quem não ouve ou não gosta da banda tem um respeito e um encantamento pelas letras, quase como poesia, pelo aquilo que representou na música brasileira”, concorda Alice.

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