Descrição de chapéu

Gravação de 'Chega de Saudade' foi um parto, mas elevou à eternidade som sem nome

Com lançamento de disco, bossa nova decolava para a eternidade.

Ruy Castro
Rio de Janeiro

Onze dias antes, em 29/6, o Brasil fora campeão do mundo pela primeira vez, na Copa da Suécia. Em condições normais, o baiano João Gilberto, 27, louco por futebol e torcedor do Vasco (o qual tinha três titulares na seleção: Vavá, Orlando e o capitão Bellini), ainda estaria saboreando aquela conquista. Mas era pouco provável que, ao subir ao quarto andar do edifício São Borja, no centro do Rio, naquele dia 10 de julho de 1958, João Gilberto pensasse em outra coisa que não fosse o disco que estava gravando.

Ali ficava o estúdio da Odeon, a principal gravadora do país, e ele só conseguira com que ela o deixasse gravar um single —um 78 r.p.m.— porque amigos como Antonio Carlos Jobim e Dorival Caymmi haviam pressionado Aloysio de Oliveira, o diretor artístico da fábrica, a aceitá-lo. Não fora uma tarefa fácil —porque, naqueles dias, João Gilberto era um dos artistas mais desconhecidos do país.

Nada que fizera até então chamara minimamente a atenção do público. Desde que deixara o conjunto vocal Garotos da Lua, seis anos antes, seu nome nunca mais saíra no jornal —foto, então, nem pensar. Não tinha discos para tocar no rádio, ninguém ouvira falar dele na televisão e ele nunca se apresentara nas grandes boates, como o Vogue ou o Sacha’s. Participara recentemente como acompanhante em duas faixas de um LP, “Canção do Amor Demais”, com Elizeth Cardoso, em que o autor da contracapa, Vinicius de Moraes, esquecera-se de mencioná-lo. Pois, com tudo isto, João Gilberto já se tornara uma lenda entre os músicos de sua geração.

Em fins de 1956, depois de quase dois anos sumido, ele reaparecera no Rio com um novo estilo de tocar violão e cantar. Era algo aparentemente sofisticado e complexo demais para a época. Mas um pianista, arranjador, maestro e compositor que ele conhecia apaixonou-se por aquele estilo: Tom Jobim. Essa paixão contagiou um grupo de jovens cariocas empenhados numa reformulação do samba —Newton Mendonça, Sylvia Telles, Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, os irmãos Castro Neves, os quase garotos Roberto Menescal e Nara Leão, vários outros. Ao ouvir João Gilberto, em audições domésticas ou no barzinho do hotel Plaza, em Copacabana, eles viram nele a resposta às suas preces.

A gravação do 78 estava se constituindo numa batalha. O perfeccionismo do artista ameaçava enlouquecer os técnicos, a orquestra e o próprio Tom. Nada parecia satisfazê-lo. Mas Tom segurou a barra, em nome de algo que já suspeitava maior do que ele ou do que João Gilberto —um novo conceito, um novo ritmo, uma nova música. E só então, em alguma hora do dia, produziu-se a versão que João Gilberto consideraria perfeita, definitiva.

Com “Chega de Saudade”, de um lado, e “Bim-Bom”, do outro, aquela música sem nome —só meses depois seria chamada de bossa nova— decolava para a eternidade.

Ruy Castro é colunista da Folha, autor de livros como “Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa Nova” (1990)

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