'Ilha dos Cachorros' traz mensagem política, mas pouca presença feminina

Animação sobre cães traz todas as marcas do cineasta Wes Anderson

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Cena do filme 'Ilha dos cachorros', de Wes Anderson

Cena do filme 'Ilha dos cachorros', de Wes Anderson Divulgação

Berlim (Alemanha)

Mesmo debaixo da pelugem espessa de marionetes é possível notar as mesmas caras abobalhadas com que são retratados os atores dos filmes de Wes Anderson —esse, talvez, a mais completa tradução do transtorno obsessivo-compulsivo no cinema.

A animação “Ilha dos Cachorros”, que estreia nesta quinta (19), é a cara do seu dono. Presença cativa no sofá de hipsters e afins, Wes despeja todos os seus tiques: overdose de tons pastel, composições simétricas e um elenco numeroso para contar uma fábula de personagens deslocados e famílias rompidas.

Bryan Cranston, Bill Murray, Edward Norton, Liev Schreiber, Jeff Goldblum e Bob Balaban formam o time de desgarrados da vez. Cães, no caso.

Na história, ambientada num Japão futurista, irrompe um surto de gripe canina e todos os cachorros são mandados para uma ilha-lixão. O primeiro exilado é Spots (voz de Schreiber), xodó de Atari, o sobrinho órfão do prefeito tirânico. O menino parte, então, sozinho para resgatar o bicho e encontra auxílio de uma matilha de machos alfa.

Os cachorros do grupo ecoam a índole dos donos de suas vozes. O fanfarrão Murray dubla a mascote esportiva Boss; o estilo dândi de Goldblum casa com o husky fofoqueiro Duke; o soturno Cranston faz a voz do antissocial Chief etc.

“Gosto de interpretar esses tipos escaldados, curtidos. Me ajuda como se fosse uma terapia”, diz Cranston, sentado à mesa de um cinco estrelas histórico no centro da capital alemã. “Ilha de Cachorros” abriu o último Festival de Berlim, em fevereiro, e levou o prêmio de melhor direção.

Embora seu rosto seja hoje famoso, o californiano de 62 anos já emprestou a voz grave a dezenas de dublagens.

“Tentei passar pela voz o ressentimento de um personagem sem teto, agressivo e territorialista. Soa humano, não?”, indaga o ator, que diz ter achado no cinema alívio para a mágoa de ver o pai abandonar a família, em sua infância.

E foi pelo papel de um pai afetuoso, ainda que imoral, que Cranston ascendeu. Seu Walter White, o professor de química que usa os conhecimentos para se tornar um megatraficante de drogas na série “Breaking Bad”, encontrou identificação no público que ele diz não ter achado “nada surpreendente”.

“As pessoas viram que a decisão que ele tomou, mesmo errada, era algo que também poderiam ter tomado”, afirma. “Ele não virou um traficante porque quis, mas porque foi o que poderia se tornar. Se fosse matemático, pensaria em formas de ludibriar a loteria.”

Chief tem a mesma rabugice de White. Só quem o faz abanar o rabo é a cadela de desfiles Nutmeg (Scarlett Johansson), mote de uma piada de leve ressonância feminista no longa. Quando ele pergunta com quem ela anda cruzando, a cachorrinha o repreende.

Ao estrear em Berlim quatro meses após a eclosão do escândalo Weinstein e do movimento, a animação nasceu démodé —os parcos personagens femininos, mesmo a ativista dublada por Greta Gerwig, são apoios dos machos.

“Homens não têm que opinar sobre #MeToo, simplesmente porque homens e mulheres vivem em mundos diferentes”, diz Balaban, fugindo de tema espinhoso. “O que posso dizer é que é bom que esses movimentos existam.”

A seu lado, Murray diz que achava que “nada aconteceria àquele cara” [Weinstein], mas também se dobra para não tropeçar em assuntos políticos. “Porque tudo o que digo é tirado de contexto. Aconteceu comigo na semana passada.”

O ator se refere a uma declaração em que criticava os Democratas por “falar às minorias, em vez de falar a todos”. A frase fez a festa em sites de direita. “A minha crítica também era voltada aos Republicanos, que falam como se fossem porta-vozes de Jesus.”

Feminismo é tema delicado para Schreiber, que está em “A Rainy Day in New York”, novo longa de Woody Allen, outro nome fulminado por acusações. Ao contrário de colegas como Gerwig e Timothée Chalamet, que se apressaram em pedir desculpas por trabalhar com o diretor, ele é cauteloso.

“Quando condenamos por instinto, a democracia corre risco”, diz Schreiber. “Há disparidade de poder entre homens e mulheres nessa indústria, mas sou reticente quando arte e política se misturam.”

Ele alfineta Natalie Portman, que ao apresentar os concorrentes a diretor no Globo de Ouro, frisou que eram todos homens. “Me incomodou. Ainda mais quando entre os indicados havia Guillermo del Toro, que fez ‘A Forma da Água’, respeitoso às mulheres.”

Dono de um terrier resgatado dos destroços de um furacão, Schreiber diz que imaginava vozes para animais desde criança. Wes frustrou seus sonhos. “Embora me achasse habilitado a fazer um cão, ele queria justo a minha voz.”

Na capital alemã, Schreiber divaga sobre o afeto incondicional de Woody, seu cão. “Estou aqui tomando cappuccino, e ele está em casa me esperando. E o que vai ganhar em troca? Dez minutos de atenção.”

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