Descrição de chapéu Flip

Mesa na Flip discute 'poetas desperdiçados' por crítica literária

Debate com Ligia Fonseca Ferreira e Ricardo Domeneck abre o terceiro dia da festa em Paraty

Anna Virginia Balloussier
Paraty

Hilda Hilst ficava meio assim por não ter tido fama em vida. “Poeta na Torre de Capim”, debate que abriu o terceiro dia da Flip, nesta sexta (27),  resgata dois poetas que, como a escritora homenageada nesta edição do festival, também foram ignorados pelo cânone literário de sua época: a xará paulista Hilda Machado (1952-2007) e o baiano abolicionista Luiz Gama (1830-1882).

O nome da mesa foi emprestado de uma fala de Hilda, a Hilst, que dizia ser não uma “poeta na torre de marfim”, mas uma “poeta na torre de capim”, uma troça com sua mudança para a Casa do Sol, o sítio em Campinas onde viveu cercada de cães de 1966 até sua morte, em 2004 (Nenê e Dadá foram os xodós em seus últimos anos). ​

Se o isolamento geográfico da autora de “Poemas Malditos, Gozosos e Devotos” foi voluntário, o mesmo não se pode dizer sobre como a história é por vezes arbitrária ao decidir quem merece o selo de Autor com “a” maiúsculo e quem deve viver à margem do clubinho literário.

Esse círculo vicioso entre uma crítica que não fala de um escritor que não é lido, e do escritor que não é lido porque a crítica não fala dele foi o fio condutor da mesa que reuniu Ligia Fonseca Ferreira, a grande especialista no poeta negro Luiz Gama, e Ricardo Domeneck, poeta que recuperou a verve poeta de Hilda Machado, cineasta e professora de cinema que morreu inédita em livro.

Uma discussão que, para Domeneck, pode ser sintetizada no título do livro “A Geração que Desperdiçou Seus Poetas”, sobre o russo Vladimir Maiakóvski, que se matou aos 36 anos, em 1930.

Poetas desperdiçados são tantos que, “talvez por motivos sequer literários, como os políticos, caíram por uma brecha”, afirmou o convidado da Flip.

Colabora para esse “quem é quem na literatura” a obsessão com a qual estudamos autor x ou y só porque a crítica o ungiu antes ---e por parâmetros, diga-se, subjetivos. “Qualquer escritor que não se encaixa no estilo que foi escolhido como o do momento cai por essas brechas.”   

Aqui cabe uma crítica ao jornalismo cultural, segundo Domeneck. “Ele tem a obrigação de ser investigativo. Essa ideia do gancho, de só se escrever sobre algo se houver um gancho, o centenário de livro tal… O jornalismo não pode depender disso. Precisa descobrir o que  há de melhor, mesmo se esse melhor estiver acontecendo numa cidade minúscula do país.”

Daí os nomes de Hilda Machado e Luiz Gama.

Ele, contou a craque no assunto, foi “vendido aos 10 anos de idade e só aos 17 vai ser alfabetizado por um estudante que vivia na casa de seus senhores”. Com 18, conseguiu provas de ter nascido livre. “Quem viu ‘12 Anos de Escravidão’ lembra como isso era uma coisa difícil”, disse Ferreira.

Acabou mais conhecido por seu papel como advogado e ativista pró-República (morreu sete anos antes de o Brasil virar uma). “A escrita vai se tornar sua alma principal.”

Contudo, era um poeta de mão cheia e “o primeiro escritor negro que fala de sua condição na escrita”, afirmou Ferreira. Um de seus poemas por ela evocados: “Quem Sou Eu?”.

Quem era ele: alguém “marcado em toda a sua produção por seu corpo, sua vivência sofrida”. Um trecho da obra:

Eu bem sei que sou qual Grilo,
De maçante e mau estilo;
E que os homens poderosos
Desta arenga receosos
Hão de chamar-me Tarelo
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu que não me abalo
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.

Hilda Machado também poria trote a muita gente que se permitisse abrir seu livro, disse Domeneck.

Como o russo Maiakóvski, ela também se suicidou. E, tal qual Hilda Hilst, foi uma dessas mulheres “donas de seus próprios passos”.  

“É importante ver essas duas mulheres vivas e corajosas serem celebradas”, sobretudo diante do “conservadorismo cafona que tomou conta” dos nossos tempos, defendeu o poeta. ”Espero que ela assuste muita gente que abrir o livro dela.”

Domeneck leu um poema seu “claramente de amor, mas de um desejo de vingança contra esses machos filhos da puta”.

Eis versos de “Miscasting”, que aborda a sensação de deslocamento que ela sentia no mundo.

adeus ardor
adeus afrontas
estou entregando o cargo
onde é que assino

há 77 dias deixei na portaria
o remo de cativo nas galés de Argélia
uma garrafa de vodka vazia
cinco meses de luxúria
despido o luto
na esquina
um ovo
feliz ano novo
bem vindo outro
como é que abre esse champanhe
como se ri 

Para Domeneck, também deslocado é o papo de que poesia é um gênero à beira do precipício. “Parem com essa história de que a poesia está em crise pois não vende.”

Poetas não podem se deixar levar por essa medida, afirmou. “Não vender não é problema nosso. Precisamos produzir.”  

No começo da mesa, a mediadora Rita Palmeira, editora da Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha, contou que Alcir Pécora, professor de teoria literária da Unicamp e editor das obras reunidas de Hilda Hilst na editora Globo (2001-08), foi um desfalque. Ele avisou que não poderia ir, pois sofre de labirintite.

Mas Pécora apareceu em vídeo no qual lembrou que, certa vez, a amiga Hilda, muito ligada em temas sobrenaturais, lhe contou ter sentido a presença de Camões em seu banheiro. Ele brincou que não, não, Camões, não, devia ser o Cervantes. 

Quixotesca a jornada do poeta, de certa forma, sempre o é. 

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.