Produção cinematográfica sobre apocalipse explode no século 21

De 2001 a 2018, quantidade de longas que retratam fim do mundo é maior que a soma dos cem anos anteriores

Cena do filme "Donnie Darko" (2001)
Cena do filme 'Donnie Darko', de 2001 - Divulgação
Mariana Vick
São Paulo

​O mundo está prestes a acabar. Pelo menos, nos cinemas. O apocalipse nunca esteve tão próximo quanto na produção recente.

Um levantamento da Folha a partir do IMDB, banco de dados sobre filmes e séries, mostra que a produção de 2001 a 2018 de longas que retratam o fim do mundo —211, no total— é maior que a soma de todos os lançamentos sobre o tema no século 20: 154 longas.

É o equivalente a dizer, em comparação com a produção total em cada época —mais de 210 mil longas lançados no século 20 e 124 mil no século 21—, que, se a cada 10 mil filmes dos anos 1990, 7 eram sobre o fim do mundo, nas últimas duas décadas esse número cresceu para 17.

Para chegar ao resultado, a reportagem usou as informações de filmes que continham entre as palavras-chave "end of the world" (fim do mundo, em inglês).

A coleta dos dados foi realizada em meados de junho. Ao todo, foram levantados 365 longas produzidos desde 1916 —incluindo produções de 2018, como "Círculo de Fogo: A Revolta" e "Vingadores: Guerra Infinita".

Na lista de produções sobre o fim dos tempos, não entram só filmes de ficção científica.

Em 2011, os cinemas exibiam "Melancolia", em que personagens lidavam com suas emoções enquanto um planeta estava em rota de colisão com a Terra.

O drama dirigido pelo dinamarquês Lars von Trier retratou o apocalipse num momento em que a indústria pensava presenciar a extinção do próprio cinema, diante das incertezas da substituição da película pelo filme digital nos anos 2010.

A crise, hoje superada, é um dos argumentos de Lúcia Monteiro, pesquisadora de cinema da USP e colaboradora da Folha, para tentar explicar a explosão neste século de filmes sobre o assunto, que, há mais de cem anos ganha plateias com histórias sobre alienígenas, heróis, bombas atômicas ou o esgotamento da Terra.

Entre as razões para o boom do fim do mundo no cinema no século 21, estão impasses típicos de nossa época, como a ascensão do terrorismo, a retração de empregos, o avanço implacável da tecnologia e, sobretudo, a problemática ambiental, segundo especialistas ouvidos pela Folha.

"O imaginário das catástrofes sempre tem a ver com a memória de algo que realmente ocorreu", diz Monteiro.

Se, em 1916, o dinamarquês "O Fim do Mundo", de August Blom, refletia o pânico da sociedade de um fenômeno como o cometa Halley, o roteiro de "2012" (2009), sobre a destruição do planeta por desastres naturais, "não poderia ter sido escrito em outra época", afirma a crítica.

O levantamento também constatou a variação de gêneros e temas predominantes nos filmes sobre o apocalipse.

Ao longo dos anos, a ficção científica, que dominava mais da metade dos longas com temas apocalípticos produzidos nas décadas de 1950 a 1970 (nos anos 1950, eram 84%), perdeu espaço para filmes de ação, hoje 51% dos que abordam o assunto.

A mudança se deve, em parte, à diminuição do medo de uma guerra nuclear —tema de clássicos como "Dr. Fantástico" (1964) e "O Dia em que a Terra Parou" (1951)— a partir da queda do Muro de Berlim, em 1989.

Por outro lado, a explosão dos filmes de ação, facilitada pelo advento do formato digital, demonstra uma estratégia da indústria de produzir filmes fora de série quando os espectadores estão deixando de ir aos cinemas.

"Se [o filme] mostra o maior tsunami da história, você vai querer ver isso", diz Monteiro. Nesse contexto, as produções recentes ficam mais caras —mas também com mais arrecadação nas bilheterias.

Destacam-se os longas de heróis. Numa das sessões de estreia de "Mulher-Maravilha" (2017), que tratava de uma ameaça de escala global, cinco trailers abordaram temática catastrofista semelhante, a exemplo do último longa da franquia "Transformers".

Para Leonardo Masaro, doutor em filosofia pela USP, o sucesso dos longas revela a força dos discursos sobre o tema mas também uma indisposição social para enfrentá-los.

Sua tese de doutorado defendia que os discursos sobre o apocalipse, desde meados do século 20, têm origem na ideia de que haveria um limite na natureza a impedir a continuidade da vida industrial. Para ele, a atual instabilidade climática já é o começo de um fim do mundo.

"Estamos vivendo uma realidade do colapso, do ponto de vista econômico, social, cultural ou ecológico", diz. "Mas há um tabu. Não se pode falar em modificar nosso sistema de nenhuma maneira."

Segundo ele, o boom do fim do mundo no imaginário (como no cinema) ocorre graças a um déficit de simbolização dos problemas da realidade.

"O cinema é como um ritual", afirma Masaro. "É uma experiência expiatória, por assim dizer. Por não conseguirmos falar sobre o assunto, nós o ritualizamos —assim, conseguimos trabalhá-lo em nós."

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