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Livros

Romance parece celebrar fantasia da classe média carioca alienada

Brasil narrado por Martha Batalha foi definitivamente ultrapassado como história, e como forma narrativa

ROBERTO TADDEI

Nunca Houve um Castelo

  • Preço R$ 44,90 (256 págs.)
  • Autor Martha Batalha
  • Editora Companhia das Letras

O segundo romance de Martha Batalha conta a história da família Jansson, herdeiros do cônsul sueco que se mudou para o Brasil no começo do século passado e construiu um dos primeiros prédios de Ipanema, o tal castelo do título.

Acompanhamos quatro gerações da família, num esforço literário que seria admirável caso o livro não tivesse se apoiado em saídas fáceis e resumido, assim, mais de cem anos de história numa sucessão de eventos sem maior complexidade.

Para esse romance histórico de prosa realista, o escopo temporal é uma impossibilidade, obrigando a autora a privilegiar sumários em vez de cenas.

A escritora Martha Batalha
Autora Martha Batalha, nascida no Recife e criada no Rio de Janeiro - Chico Cerchiaro/Divulgação

Mas há um erro crucial no romance. Ao optar por um narrador onisciente em terceira pessoa que muda o ponto de vista entre inúmeros personagens, a voz do livro neutraliza aquilo que poderia ser ironia, normaliza o que poderia ser crítica.

O narrador onisciente e onipresente dilui quase todas as possibilidades de uso do discurso indireto livre, esse recurso literário sem o qual a modernidade não existiria.

O efeito é contraditório. O que diz o narrador não se descola do que dizem os personagens, e o livro parece celebrar uma fantasia da classe média carioca alienada.

O narrador, que pode estar em qualquer lugar a qualquer momento, não sobe o morro uma vez sequer. Nem mesmo no quarto de empregada consegue entrar. Procura ser neutro, mas acaba sendo leniente.

Tome-se essa passagem, por exemplo: "[Dalvanise] Chegou ao Rio e se deslumbrou. A água saía da torneira a qualquer hora, e não havia ração de farinha em nenhuma das casas em que trabalhou. Retribuía a bondade dos patrões com um trabalho ininterrupto e uma existência quase transparente. Falava pouco, comia pouco e mal era vista".

Dalvanise é a empregada doméstica que atravessa o livro sem ganhar voz legítima. No trecho, escolhido dentre tantos semelhantes, não se pode dizer o que é voz do narrador, o que é opinião da personagem, o que é o olhar da autora.

O trecho termina com a conclusão opaca do narrador: "Sua vida, toda a sua vida ela dizia às amigas do morro, ao trocador do ônibus, ao moço da farmácia, à caixa do supermercado, ela devia" à patroa.

Nessa fantasia, é como se o Brasil tivesse sido colonizado primeiramente por um cônsul sueco e, em vez da tragédia agridoce que se tornou o país, tivéssemos um drama burguês representado há um século em Ipanema e Leblon.

Um país que não dá legitimidade a empregadas domésticas, para quem os restos das refeições dos patrões são "despachados", que são treinadas para fazer "os barulhos corretos". Um país onde porteiros, pintores, mestre de obras, garçons e caixas são figurantes, nem nome próprio merecem ter. Onde índios são entidades fantásticas, nunca reais.

Muitos poderiam apreciar essa fantasia de formação de um país: um castelinho construído em frente à praia em vez de fortes militares e escolas jesuítas. Porres homéricos e festas dionisíacas em vez de genocídio e pobreza.

Mas o resultado disso só deve agradar, é preciso dizer, àqueles que hoje moram de frente ao mar na Zona Sul carioca, ou os que almejam fazê-lo.

É um grande sonho de verão de classe média carioca, com a profundidade de uma revista de comportamento, onde uma sogra "botava ruge para fritar bifes" e Estela, a protagonista, "tinha sido feita para admirar ornamentos de Natal e para ser admirada enquanto admirava ornamentos de Natal".

Esse é um país que desdenha do Pasquim e ri de Glauber Rocha enquanto reforma a cobertura de 300 m², financiada pelo dinheiro do cartório herdado do tal cônsul sueco —ou seja, por todos os outros cidadãos sem voz no livro.

O Brasil narrado por Batalha foi definitivamente ultrapassado. É um país que não lembra mais da chacina da Candelária. Que ignora as intervenções militares. Que nunca ouviu um disco dos Racionais. Ultrapassado como história, mas também como forma narrativa.

Roberto Taddei
Autor do romance ‘Existe e Está Aqui e Então Acaba’ (2014), entre outros.
 

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