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Margaret Lyons

Segunda temporada de 'The Handmaids Tale' é brutal, não muito mais

A aura e o marketing da série sugerem que assisti-la é, em si, um ato político

Margaret Lyons
The New York Times

Quando a primeira temporada de “The Handmaid’s Tale” estreou no serviço de streaming Hulu, em 2017, Donald Trump havia assumido a Presidência apenas três meses antes —a tensão era forte, os nervos estavam à flor da pele. 

A eleição de um presidente que, entre outras coisas, foi gravado fazendo comentários alegremente misóginos, inspirou um pânico plausível entre algumas mulheres e outras pessoas, que sentiam que seus direitos civis poderiam em breve sofrer ameaças ainda mais graves.

Boa parte da cobertura sobre “The Handmaid’s Tale”, uma série adaptada de um romance publicado em 1985 por Margaret Atwood, girava em torno de a série estar surgindo em momento oportuno, embora isso não tivesse acontecido deliberadamente.

A primeira temporada, relativamente fiel ao livro, tanto causou pavor quanto conferiu validade a medos e frustrações, amplificando-os e lhes servindo como veículo. “Eu preferiria que isso não fosse tão relevante”, foi o que dissemos, haha. A produção conquistou uma pilha de Emmys, entre os quais o de melhor série dramática, a primeira vez que isso aconteceu com uma série produzida para streaming.

Mas, ainda durante a elogiada primeira temporada, começou a emergir lentamente um medo que ia além do desespero social; ele tinha por origem a percepção de que a série, renovada para uma segunda temporada, talvez já não tivesse muito a dizer.

A segunda temporada consistiu quase inteiramente de material novo. E, embora deixar para trás a fonte seja uma escolha neutra em termos de qualidade, à medida que “The Handmaid’s Tale” se afastava de sua história original, também se afastava de uma de suas ideias mais significativas: a de que June (Elisabeth Moss) é uma pessoa comum.

Essa é uma das características mais perturbadoras e mais essenciais do livro, no qual ela só é chamada de Offred, e nos lembra de que não é preciso ser Harry Potter, Katniss Everdeen ou Jesus Cristo para manter a humanidade, mesmo nas circunstâncias mais brutais e opressivas.

Na série, porém, June é tão especial que sua carranca poderia facilmente estar estampada no dinheiro da revolução. O marido dela confronta seu captor, no Canadá. Ela tem um bebê.

Ainda que pessoas tenham morrido para ajudá-la a escapar no começo da temporada, ela agora está determinada a ficar em Gilead, porque, imagino, é preciso alguma coisa para servir de tema à terceira temporada. Uma interpretação é a de que não há como escapar a ser subjugado por um regime sufocante. Mas, dento da série, é possível escapar, e ainda assim June decide não fazê-lo.

A segunda temporada foi brutal como se esperava, com muita tortura, estupros, execuções e homicídios. Os produtores cederam a cada um dos mais tediosos instintos da série, optando por olhares demorados e longas montagens sem diálogos em lugar de mostrar qualquer novo desenvolvimento na vida interior dos personagens. Cada aspecto da existência é horrendo. O sabor dos cookies é péssimo. Oprah está no exílio. Vivemos no Polo Norte da miséria, e a ordem é subir ainda mais para o norte.

Com isso, tudo que a série é capaz de fazer é andar em círculos. A ferida primal de June é se ver separada de sua filha, Hannah. Como não é possível intensificar essa dor, a segunda temporada simplesmente a repete.

Isso poderia ser visto como assustadoramente apropriado, dada a crise de direitos humanos na fronteira mexicana, que viu filhos de imigrantes separados de seus pais. Mas não inteiramente, porque um ponto de conflito essencial dos Estados Unidos modernos que “The Handmaid’s Tale” ignora é a questão da raça e da etnia. E isso não é algo que nossos Estados Unidos ignorem.

O trauma de June se repete, e o mesmo vale para todos os demais traumas. Emily (Alexis Bledel), a amiga de June, que na temporada passada foi punida com a amputação de seu clitóris, foi enviada a um campo de concentração, como Janine (Madeline Brewer), que teve um olho arrancado na primeira temporada.

Depois de alguns episódios de labuta, as duas voltam a Gilead —de novo ocupadas com visitas ociosas ao mercado e conspirações sussurradas. A noivinha de Nick arruinaria tudo? Não; ela termina executada, e tudo volta ao normal e ao péssimo.

Na metade da segunda temporada, um grupo de aias detona uma bomba em Gilead e então... nada demais acontece, exceto que as aias passam a usar véus dramáticos para demonstrar seu luto, mais ou menos como as cheerleaders de “Riverdale” têm um uniforme específico para luto.

June se vê de volta com os Waterford, apesar de suas fugas da prisão e da oportunidade de matar os dois a tiros. O que nos leva à terra de “The Walking Dead”, em que os personagens enfrentam problemas idênticos por toda uma década, e devemos ver sua obstinação como ética, em lugar de simplesmente idiota.

Há muitas séries em que nada acontece, e muitas imagens de tortura disponíveis para os interessados, mas a aura e o marketing de “The Handmaid’s Tale” sugerem que assistir à série é, em si, um ato político. Não estou tão certa. Há uma diferença entre se exercitar e simplesmente suar.

O verdadeiro cartão de visitas da série não é a agitação, mas a estética —e essa estética, com os vestidos vermelhos, o cinzento das Marthas e o azul-escuro de Serena, e assim por diante, é poderosa e importante. Mas não ecoa de maneira alguma as crises atuais. Se você acha que todas as mulheres dos comandantes estão recebendo jaquetas da Zara, pode mudar de ideia.

Em lugar de um chamado às armas, “The Handmaid’s Tale” é parte cilício, parte marketing. A selvageria da série nos dilacera, e em seguida temos a oportunidade de comprar um vinho baseado em uma das personagens —só a reação muito adversa do mercado convenceu o estúdio MGM, que produz a série, a perceber que o pinot noir Offred era uma má ideia, e abandoná-la.

Há também camisetas da Hot Topic portando o lema “nolite te bastardes carborundorum”. Vi até cachorros vestidos como aias para o Halloween. Não estamos falando de um grito de guerra feminista ou de uma catártica exposição de queixas. O que temos é só conteúdo especial para fãs.

A série não é a #resistance. É simplesmente uma nova embalagem e uma nova maneira de comercializar o sofrimento das mulheres, como tudo mais: só mais uma história a que estamos cansados de assistir.

Tradução de Paulo Migliacci

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