Afetados por traumas da guerra, protagonistas de "O Insulto" se encontram presos no ressentimento

Longa do libanês Ziad Doueiri foi exibido no Ciclo de Cinema e Psicanálise

Camila Gambirasio
São Paulo

No filme libanês "O Insulto", os personagens principais, pertencentes a grupos sociais que lutaram em lados opostos na guerra civil do país (1975-1990), se encontram presos em uma malha de ressentimento. Ao mesmo tempo, eles são obrigados a manter contato constantemente.

O mote do longa do diretor libanês Ziad Doueiri é o conflito entre o mecânico Tony Hanna, cristão libanês, e o mestre de obras Yasser Salameh, refugiado palestino, que se desentendem por causa de um incidente menor. Ambos vivem em Beirute. A querela vai numa escalada até chegar à corte suprema do país.

"Quando Freud fala de xenofobia e do desprezo aos semelhantes, ele trata do narcisismo das pequenas diferenças, que é quando um grupo de pessoas se une minimizando as diferenças que têm entre si e elegendo o outro como inimigo", explicou o psicanalista Bernardo Tanis, presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, no debate que seguiu à sessão do filme na última quarta-feira (1), na Cinemateca Brasileira, como parte do Ciclo de Cinema e Psicanálise, organizado em parceria com a Folha.

O ator Kamel El Basha em cena do filme 'O Insulto'
O ator Kamel El Basha em cena do filme 'O Insulto' - Divulgação

Segundo Tanis, as pessoas fazem isso para fugir do contato com as diferenças do outro e delas mesmas, porque querem se afastar não só dos seus desejos, mas da dor e das memórias de situações traumáticas que viveram. "Isso tem um preço, que no filme é o ressentimento. Ficamos ressentidos ao carregar o peso de uma situação traumática, assumindo o lugar de vítima, aspirando uma vingança e nunca perdoando.”

De formas distintas, ambos os protagonistas carregam cicatrizes da violência da guerra. “Essas memórias ficam vagando em algum lugar da mente e não somos capazes de evocá-las sozinhos. É algo muito próximo do que vimos com Tony, que através das imagens do conflito que viveu consegue trazer à tona algo que estava recalcado”, explicou o psicanalista.

A cena em que o advogado de Tony exibe no tribunal imagens de arquivo do massacre de Damour, região de onde o libanês é originário, também foi destacada pela crítica de cinema Lúcia Monteiro, que participou do debate. Para ela, além de reafirmar o laço da ficção com a realidade, a cena funciona como um gatilho para desencadear reações emocionais no cliente, na juíza e no júri: "Até então Tony provavelmente não tinha percebido o motivo pelo qual Yasser o incomodava tanto”.

No meio dos discursos, de advogados formulando ideias e argumentos no tribunal, a imagem do massacre entra como uma subversão da palavra e da retórica, trazendo à tona as emoções mais primárias, colocou Tanis. "É interessante como o filme escolhe a palavra [os insultos] como seu centro, mas no final volta a recorrer à imagem", disse.

Em meio ao ressentimento que sentem, há, em determinado momento, uma tentativa de reparação. "Quando o libanês se desculpa, é evidente que não é porque foi xingado, mas pela história, pelos massacres. Já quando o palestino não consegue pedir desculpas, está silenciando algo que lhe é terrível, a negação da identidade de seu povo", afirmou o psicanalista.

A aproximação dos personagens ainda foi tema de questionamento da plateia, que apontou para o momento em que Tony, por vontade própria, ajuda Yasser a consertar seu carro. Para os debatedores, contudo, a cena não significaria necessariamente uma trégua na briga, mas uma nova camada de complexidade na relação entre eles.

“Freud fala da ambivalência do ser humano, é amor e ódio o tempo inteiro. São momentos mesclados, como vemos nessa cena”, contribuiu a psicanalista Sylvia Pupo, mediadora da conversa.

Apesar de o longa apresentar um processo catártico, ele não tem a configuração clássica de uma narrativa de fundação nacional de união entre povos distintos, segundo Lúcia: “Talvez o filme esteja apenas apontando para o que pode ser uma nova configuração do país que passa pela conciliação entre os diferentes.”

“A questão é que tipos de processos de luto e transformação seriam precisos para sair de uma memória de ressentimento que elabora o trauma, a morte e a dor. Quantos países e povos conseguiram elaborar esses lutos?”, instigou Tanis.

O Ciclo de Cinema e Psicanálise é realizado pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e pela Sociedade Amigos da Cinemateca, com o apoio da Folha. O próximo encontro acontecerá nesta quarta-feira (8) às 19h, com a exibição de “Eu Não Sou Seu Negro” na Cinemateca (largo Senador Raul Cardoso, 207, Vila Clementino, São Paulo).

É possível retirar os ingressos gratuitamente no local a partir das 18h.

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