'Bonecas empoderadas não me convencem', afirma Jill Lepore

Docente de Harvard usa disputa judicial entre Barbie e Bratz para narrar ruína do feminismo de autoajuda

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São Paulo

Os fabricantes de brinquedos podem até tentar, mas essa tentativa de vender Barbies empoderadas, vestidas de Frida Kahlo, não vai colar. O marketing feminista não consegue camuflar o sexismo entranhado em bonecas com seios fartos, cintura minúscula e pernas longas como as Barbies e as Bratz —nem quando elas são astronautas ou aviadoras.

"Peço desculpas às pessoas bem intencionadas que idealizaram essas bonecas poderosas, mas elas não me convencem nem um pouco", diz Jill Lepore, professora de história da Universidade Harvard e autora do artigo "A Guerra das Bonecas", publicado na revista Serrote, a ser lançada nesta quarta-feira (8).

No texto, Lepore reconta a briga judicial entre a Mattel e a MGA Entertainment pelos direitos sobre a boneca Bratz, que ameaçou o reinado da Barbie nos anos 2000.

A estudante de arte Sam Humphreys subverteu a perfeição da boneca Barbie ao colocá-la como vítima de abuso
Criação da artista Samantha Humphreys, que coloca a boneca Barbie em situações de abuso, em série de 2014  - Divulgação

Mas a disputa nos tribunais é apenas pano de fundo para uma discussão sobre o machismo na indústria de brinquedos e no sistema judiciário, além do fracasso de um pseudo-feminismo de autoajuda em voga hoje em dia.

A Barbie nasceu em 1959, um clone de uma boneca alemã de inspiração nitidamente pornográfica, a Lilli. "Lilli trabalhava como secretária, mas geralmente estava em trajes mínimos. Uma vez, apareceu no escritório de biquíni. "Que tolinha!", ela dizia. "Acordei e achei que ainda estava de férias!" ("Cavalheiros preferem a Lilli", dizia seu slogan.)" É o que conta a historiadora no artigo, originalmente publicado na revista New Yorker.

"Hoje tenho um encontro!" e "Quer fazer compras?" eram algumas das frases das primeiras Barbies falantes.

Pouco depois de nascer, Barbie ganhou um namorado, o praieiro Ken, batizado em homenagem ao filho de Ruth Handler, fundadora da Mattel, e sósia do ator Rock Hudson.

A "modelo adolescente" rapidamente substituiu aqueles bebês de plástico que tomam mamadeira e se tornou o brinquedo preferido das meninas. Segundo Lepore, nove em cada dez meninas americanas entre três e dez anos têm pelo menos uma Barbie —e é provável que existam mais Barbies do que pessoas nos Estados Unidos.

Barbie reinou inconteste até Carter Bryant criar a Bratz, em 2000, e vender sua ideia para a MGA Entertainment. A Bratz vinha com nomes "vagamente étnicos" e uma pegada mais urbana. Em 2006, tinha 40% do mercado de bonecas. Mas havia um problema: Bryant era funcionário da Mattel quando criou a Bratz, e o caso foi parar nos tribunais.

"A rixa entre Barbie e Bratz ocupa um exíguo território delimitado por fronteiras tênues: entre moda e pornografia, entre original e cópia, entre brinquedos para meninas e direitos para as mulheres", diz Lepore.

As Bratz, segundo a autora, foram recebidas como sinal da "morenização da América", porque vinham em diversas raças e etnias. Continuavam a ser "mulherzinhas", claro: podiam até ter hobbies, mas nunca trabalhavam.

A Mattel esperou até 2016 para lançar as Barbies com "diversidade corporal, que vêm em medidas, formatos e cores variadas". E a Barbie médica, aponta Lepore, combinava estetoscópio com salto agulha e saia colada no corpo.

Paralelamente a essas transformações apenas epidérmicas das Barbies e Bratz, ganhava força uma versão "faça você mesma" de luta pelos direitos das mulheres.

"A publicação do livro 'Faça Acontecer', de Sheryl Sandberg, em 2013, acentuou o declínio no empenho estrutural pelas reformas no ambiente de trabalho. Em vez de lutar por salário igualitário, carreira igualitária e licença-maternidade, o que se ouviu foi que as mulheres precisavam se empoderar, uma a uma, vestindo-se para conquistar e redobrando o esforço no trabalho."

Para Lepore, o feminismo baseado no empoderamento é um embuste cínico, e o MeToo foi consequência do fracasso desse feminismo.

"Para mim, este é o problema: o feminismo de empoderamento, que começou nos anos 1990, os vestidos com ombreiras, essa bobagem de 'faça acontecer', o cale-se e use salto alto! Scarpins, ombreiras, roupas de Barbie e de Bratz, isso não é mudança política, é derrota política", diz Lepore à Folha.

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