Briga de ídolos do punk de SP espelha a polarização política

Vocalista de esquerda da Garotos Podres faz retorno sem parceiros de direita

Apresentação da banda Garotos Podres no Hangar 110, casa de shows do underground paulistano, no ano passado
Apresentação da banda Garotos Podres no Hangar 110, casa de shows do underground paulistano, no ano passado - Marcelo Justo/UOL
Gustavo Fioratti
São Paulo

Depois de descer o verbo no ex-companheiro de banda José Rodrigues Mao Júnior —“um retardado”— o baixista Michel Stamatopoulos finalizou levantando a bandeira branca. “Fala pro Mao que a vaga de vocalista dos Garotos Podres está aberta”. 

A banda de veteranos do punk paulista, autores das birrentas “Papai Noel, Velho Batuta” e “Vou Fazer Cocô”, rachou em 2012, com direito a um final ruidoso —Stamatopoulos (o Sukata) e o baterista Leandro Caverna abandonaram Mao em um hotel de Araraquara, no interior paulista, após uma noite de arranca-rabos em um festival de rock.

Mao não quis retomar a parceria e hoje disputa na Justiça com os ex-parceiros a marca Garotos Podres, que ele registrou logo depois da briga sob o argumento de que é o mais antigo da banda e compositor da maioria das canções, o que os outros músicos contestam. 

O rompimento resultou em algo estranho para os fãs. Hoje existe o risco de haver duas bandas com o mesmo nome na praça —Sukata e Caverna seguiram com apresentações até 2016 e, embora Sukata tenha anunciado o fim do projeto nas redes sociais, ele diz que planejam retomar as atividades no ano que vem.

Mao, que havia criado outra banda, O Satânico Dr. Mao e os Espiões Secretos, resolveu, no fim do ano passado e na companhia de músicos mais jovens, recuperar a alcunha que, segundo Sukata, ainda hoje se encontra impedida por determinação judicial.

No sentido horário, da esq. para a dir.: Português, Mauro, Sukata e Mao em formação da Garotos Podres nos anos 1990 
No sentido horário, da esq. para a dir.: Português, Mauro, Sukata e Mao em formação da Garotos Podres nos anos 1990  - Divulgação

No último fim de semana, a Garotos Podres de Mao se apresentou no Centro Cultural da Juventude, na zona norte. O repertório misturou canções antigas e duas outras reunidas em um novo compacto, “Canções de Resistência”. Há outros shows agendados, o próximo para o dia 8/9, no Oxigênio Festival, no bairro Água Branca.

Ainda é estranho pensar que uma noite de bebedeiras tenha, sozinha, estragado uma parceria de três décadas. 

Mao fundou o grupo em 1982, em Mauá, tendo ao fundo um cenário punk engajado com a causa de trabalhadores. Em 1983, a banda se apresentou pela primeira vez em um festival para o Fundo da Greve de Metalúrgicos do ABC, festejando um país em transição para a democracia.

Os outros entraram para o grupo depois. Sukata embarcou um ano antes de a banda estourar em 1985 com o disco independente “Mais Podres do que Nunca”, que vendeu 50 mil cópias. Com as diversas substituições, Caverna chegou 12 anos mais tarde. 

Segundo Caverna, na noite em Araraquara, Mao começou a beber no camarim antes da apresentação e virou uma “metralhadora giratória”. Sukata diz que Mao o chutou durante o show. Caverna acha que, quando bebe, Mao “vira um cuzão” e que “sua relação com o álcool é muito danosa”. 

Mao diz que o chute em Sukata não aconteceu durante o show, foi depois. Diz que estava insistindo para que um empresário da banda prestasse contas sobre o faturamento daquela noite e, com a recusa dele e a falta de apoio dos parceiros, ficou furioso. 

Sukata conta que, no hotel, a tensão se agravou. Segundo ele, Mao batia a cabeça na parede e xingava os colegas. Ele se recorda que um lutador de jiu-jítsu “do tamanho de um armário” acordou com a briga no corredor, abriu a porta do quarto e reprimiu Mao. “Você quer que eu mesmo bata sua cabeça na parede?”, teria dito. 

“Era domingo, a gente trabalhava na segunda, cada um com seu emprego”, diz Sukata. “A gente insistiu, mas ele disse que não ia voltar, ficamos nessa até as três da manhã”, conta Caverna, que hoje é chef de cozinha e dono de uma marca de molho de tomate. Para os dois, Mao está até agora magoado por ter sido deixado para trás pelos colegas.

Mao diz que se ressente de os amigos o terem abandonado “sem dinheiro, a 300 km de São Paulo”, mas considera o episódio menor perto dos conflitos ideológicos. Ele estava desestimulado com um mal-estar que atribui às inclinações políticas conservadoras dos parceiros e às censuras dentro do grupo a canções suas como “Repressão Policial (Instrumento do Capital)”. 

Sukata e Caverna haviam se tornado mais íntimos. “A gente frequentava um a casa do outro. O Mao eu só via quando entrava na van em dias de apresentação”, diz Caverna. 

“Nem sei que música é essa ‘Repressão Policial’, nunca ouvi essa bosta”, diz Sukata. “Por que não tocaríamos ‘Repressão Policial’? Ou ‘Repressão do Crime Organizado’? Ou da esquerda? Ou da direita? Pode ser que ele tenha sido contrariado quando mostrou uma musiquinha que não ia nem pra frente nem pra trás.”

“As músicas do Mao estavam infantiloides”, afirma Caverna. “Não vou ficar subindo no palco para dizer que vou arrotar. Sou um garoto podre, mas hoje eu tenho 50 anos de idade.”

Mao é professor de história com doutorado pela USP, autor de “A Revolução Cubana e a Questão Nacional”. Assumidamente de esquerda, considera que o Brasil vive hoje sob uma ditadura, “uma vez que há um político, líder em pesquisas, que está preso para que não possa se candidatar”. 

Sukata está do lado oposto no espectro ideológico. Em 2016, o advogado se candidatou a vereador de São Caetano do Sul pelo PEN, hoje Patriota, sigla pela qual Cabo Daciolo se lançou candidato a presidente. Tornou-se apoiador enfático do presidenciável Jair Bolsonaro nas redes e defende valores como a família. 

Religioso, diz ser contra a legalização do aborto e a teoria de gênero, segundo a qual o masculino e o feminino não são características biológicas mas uma construção cultural. 

No Facebook, fala sobre a admiração pelos poetas beatniks e também compartilha propagandas de apoio à PM —neste mês foi a vez de uma imagem onde se lê “existem três tipos que não gostam da polícia: bandido, parente de bandido e amigo de bandido”. 

São posições que, para Mao, guardam incompatibilidades com o passado da banda, surgida “em um período de resistência contra a ditadura”. 

Houve canções da Garotos Podres censuradas pelos militares. Entre elas, “Vou Fazer Cocô” diz: “Enquanto você/ de paletó e gravata/ aparece na TV/ e diz coisas que não consigo entender/ o que eu vou fazer?/ Vou fazer cocô”. 

A letra de “Papai Noel, Velho Batuta” reclama que o velhinho “rejeita os miseráveis” e prossegue, “eu quero matá-lo, aquele porco capitalista”. A expressão “Velho Batuta” foi usada no lugar de “filho da puta” para driblar a censura. Criou-se um hino punk paulista. 

E, “de repente”, diz Mao, “temos uma Garotos Podres que defende a ditadura”. Para ele, “é comum o camarada que, incendiário na juventude, depois de velho, entra para o Corpo de Bombeiros”. “Muitos elementos do rock da década de 1980 aderiram a essa onda reacionária”, constata.

O músico se ressente por “parte de a juventude ter sido seduzida pelo discurso fascista”, em oposição à geração que o impulsionou no clima “liberou geral” dos anos 1980. 

Ao ser informado de que os outros integrantes da banda pensam na possibilidade de tocar com ele, Mao confirma a recusa. “Os que apoiam Bolsonaro, não quero nem no círculo de amizade.”

Tachado de “esquerda caviar” por Sukata, ele diz que a Garotos Podres está entre as coisas mais importantes de sua vida. “Morro, mas não posso permitir que ela se associe a um pensamento fascista.”

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