Mostra de SP exibirá filme de Lars von Trier que causou debandada em Cannes

Violento 'A Casa que Jack Construiu' será uma das atrações do festival paulistano

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Cena do filme 'A Casa que Jack Construiu', de Lars von Trier

Cena do filme 'A Casa que Jack Construiu', de Lars von Trier Divulgação

Cannes (França)

​Indignada, uma turba de smokings e vestidos longos descia a escada coberta por tapete vermelho do palácio em que ocorrem as sessões do Festival de Cannes. 

Ali dentro, na principal sala de cinema, um espaço que acomoda 2.300 pessoas, o motivo da debandada —a telona mostrava um garotinho sendo empalhado, outro alvejado por um rifle e o seio de uma mulher, arrancado, transformado em forro de carteira. 

 

Banido por sete anos do principal festival de cinema após dizer que podia “compreender Hitler”, o diretor Lars von Trier voltou à Riviera Francesa em maio com um filme que é uma reposta irônica e violenta à sua proscrição. 

“A Casa que Jack Construiu” é a história de um assassino que tem predileção por matar mulheres. Sob o rescaldo dos movimentos MeToo e Time’s Up, o dinamarquês amealhou ainda mais detratores. 

Após o alvoroço em Cannes, onde foi descrito como “vomitivo” e “patético”, o longa desembarcará no Brasil como uma das principais atrações da Mostra de Cinema de São Paulo –e, quem sabe, provocar mais uma debandada. Outros três filmes do começo da carreira do cineasta também farão parte da programação, que começa em 18 de outubro.

O filme entrará em circuito no país em 1º de novembro. 

“As mulheres com quem tive algum caso sempre tiveram essa fascinação por serial killers. É uma coincidência estranha. Deve ser sexy”, disse o diretor, no dia seguinte à estreia mundial do longa. 

Von Trier constrói a trama ancorando-se em “A Divina Comédia”, de Dante, em especial na descida ao Inferno que ocupa o primeiro terço da obra. Jack (Matt Dillon) rememora os assassinatos que cometeu em diálogo com Verge (Bruno Ganz), corruptela do Virgílio do clássico italiano.

As mortes, reconstituídas com excesso de sanguinolência, são costuradas com a conversa entre os dois personagens, uma divagação sobre a natureza do mal. Jack é fascinado por Albert Speer, o arquiteto que moldou Berlim de acordo com os delírios do Terceiro Reich, e crê que cada assassinato é uma obra de arte.

“É possível que esse filme seja mesmo sobre um artista, não um bom artista, mas um que foi levado ao limite”, afirmou o diretor, pronunciando as palavra como se as medisse, enquanto fitava o chão, nunca encarando seus interlocutores, entre eles este repórter. “Posso até concordar que matar 64 pessoas é um gesto artístico. Por que não? É tão difícil definir o que é arte.”

Dificuldades à parte, o cineasta tem uma certeza quanto ao lugar que a arte ocupa. “Estou me recuperando de uma depressão, e fazer filmes é a única coisa que me deixa relaxado. Filmar foi difícil. Estava ansioso, mas não podia beber.”

Lá pelas tantas, quem dá as caras no filme é o próprio Hitler, em registros entremeados com as cenas mais violentas das obras anteriores de Von Trier —“Ninfomaníaca”, “Anticristo”, “Dogville”. É quando o longa escancara a si mesmo como uma ironia. 

O trecho é mote para que o diretor seja questionado sobre suas declarações, dadas durante uma conversa com jornalistas sobre o lançamento de “Melancolia”, que o levaram a ser vetado do Festival de Cannes, em 2011. Na ocasião, falava sobre ter buscado suas origens e ter descoberto que o pai, que ele acreditava judeu, tinha origem alemã. Fez piada: “Está bem, sou nazista”.

Ao voltar para a mostra francesa, sete anos depois, Von Trier não crê que tenha havido um perdão. “Porque não falei nada que tenha de ser perdoado”, responde. “Aquela entrevista foi uma bagunça. Eu estava só começando a contar uma história minha. Na Dinamarca brincamos de chamar os alemães de nazistas.”

Mas, na França, entendeu-se de outra forma. O país pune declarações enquadradas sob o crime de justificação de crimes de guerra. Cinco meses após a piada, Von Trier teve de ser interrogado por exigência de autoridades francesas. 

“Se tivessem visto meus filmes, veriam que não sou um nazista típico. O politicamente correto é perigoso. Tirar as palavras de seu contexto é uma afronta à democracia.”

O petardo disparado por “A Casa que Jack Construiu” acabou atingindo também o front feminista. As vítimas preferidas do protagonista são mulheres, a começar pela primeira delas, vivida por Uma Thurman, golpeada na cabeça por uma ferramenta. A crítica chamou a obra de misógina.

“A razão pela qual ele mata mulheres tem a ver com a energia do sexo oposto. É mais dramático. Não seria o mesmo filme se matasse só homens.”

No ano passado, o cineasta ainda foi acusado de ter assediado a cantora Björk —o episódio teria ocorrido nas filmagens de “Dançando no Escuro”, em 2000. A um site francês, ele disse que não a tocou nos “lugares errados”. “Eu acho.”

Num trecho do novo filme que soa escrito para irritar defensoras do MeToo, Jack indaga: “Por que é que a culpa é sempre dos homens?”. 

Von Trier nega que seja provocação. “O roteiro foi escrito antes dos escândalos em Hollywood.” Tem a ver, segundo ele, com sua mãe feminista. “Ela me transmitiu, de alguma forma, a culpa de ser homem.”

Proposital ou não, no filme as vítimas aparecem desprovidas de grande inteligência, como se fossem todas estúpidas. 

“Por quê? Bem, aí teriam de perguntar à minha psiquiatra. Sim, ela é uma mulher.”

 

Os longas que farão parte da retrospectiva do diretor na Mostra

‘Elemento de um Crime’ (1984)

Em seu primeiro longa, Von Trier constrói uma Europa distópica, cenário da busca de um detetive por um serial killer. Para capturar o assassino, o investigador se inspira no controverso método de seu mentor, que o orienta a entrar na cabeça do criminoso

Cena do filme 'Elementos de um Crime', de Lars Von Trier
Cena do filme 'Elementos de um Crime', de Lars Von Trier - Divulgação

‘Europa’ (1991)

Nesse filme de inspiração kafkiana, ambientado logo após o fim da Segunda Guerra, um americano aceita emprego numa linha ferroviária alemã e se vê envolvido em intrigas com as tropas dos Aliados, que ocupam o país, e locais saudosos do nazismo

Cena do filme 'Europa', de Lars Von Trier
Cena do filme 'Europa', de Lars Von Trier - Divulgação

‘Ondas do Destino’ (1996)

Na Escócia, um sujeito sofre um grave acidente de trabalho e pede à mulher que ela faça sexo com outros homens. Foi o primeiro filme do diretor após ele abandonar os ditames do Dogma 95 e conserva alguns resquícios do manifesto cinematográfico

Cena do filme 'Ondas do Destino', de Lars Von Trier
Cena do filme 'Ondas do Destino', de Lars Von Trier - Divulgação
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