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Namorada revela cartas de amor do poeta italiano Giuseppe Ungaretti

Documento inédito revela lobby para autor ganhar Nobel de Literatura em 1969

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O poeta italiano Giuseppe Ungaretti em Roma, em 1960
O poeta italiano Giuseppe Ungaretti em Roma, em 1960 - Mencarini Archives/Leemage
São Paulo

Em um dia de outono, na cidade italiana de Pordenone Legge, Bruna Bianco não aguentou relembrar tanto sentimento e desmaiou pela primeira vez em 78 anos.

A história que a trouxe até aqui é comprida e começou a um oceano de distância, em uma tarde paulistana de 1966.

Foi quando ela cruzou as portas do hotel Ca’d’Oro para apresentar seus poemas ao poeta italiano Giuseppe Ungaretti —uma cena engraçada, porque a jovem de 26 anos trazia seus versinhos dentro de um saco plástico.

Ungá, como o autor ficou conhecido, achou tudo feio, gongórico e cheio de floreios —mas viu algo nos versos. Começava ali um namoro e uma farta correspondência amorosa —356 cartas que ficaram em segredo e, só agora, 50 anos depois, vêm a público.

Os documentos estão no livro “Lettere a Bruna”, que a Mondadori acaba de lançar na Itália. Bianco desmaiou, naquele dia, durante uma apresentação do volume.

A advogada aposentada Bruna Bianco, que foi namorada do poeta italiano Giuseppe Ungaretti
A advogada aposentada Bruna Bianco, que foi namorada do poeta italiano Giuseppe Ungaretti - Karime Xavier/Folhapress

Sempre se soube que Ungá, morto em 1970, apaixonou-se no Brasil —em 1968, lançou o livro “Diálogo”, com poemas dos dois—, mas ela foi discreta. Em 1996, deu sua primeira entrevista à imprensa, a este jornal, e mostrou uma carta.

Agora vai além. Bianco fala sobre as missivas e a relação que teve com o poeta neste sábado, às 19h, na Biblioteca Mário de Andrade, a convite do Instituto Italiano de Cultura.

A advogada hoje aposentada mudou de ideia ao ser incentivada pela tradutora e poeta Francesca Cricelli, que pesquisa a obra de Ungaretti e fez a transcrição das cartas. Cricelli transformou os documentos na tese de doutorado que defenderá na USP —são dela as traduções nesta página.

“Esse livro, transcrevendo-o, eu descobri a grande verdade: essas cartas, essas bruxarias de amor não foram escritas só para mim. Foram escritas para que ficassem no tempo”, emociona-se Bianco.

Ungaretti já vivera no Brasil, na virada dos anos 1930 para os 1940, dando aulas na USP. Bianco, por sua vez, chegara da Itália aos 16, com a família.

Ela gostava de um falar bonito e reconheceu esse falar em Ungaretti já no primeiro encontro com ele. “Eu era esfomeada pela linguagem, e Ungaretti me saciava.”

Vagavam juntos por São Paulo —à distância, “as luzes da cidade pareciam diamantes incrustados uns nos outros”, diz Bianco. Depois, com Ungá longe, ela percorreria sozinha os mesmos cantos.

“Carta era o único jeito de comunicação. Se tentasse ligar, só ouvia o som das ondas nos cabos transoceânicos.”

A primeira missiva, o poeta escreveu no navio de volta para casa —e as seguiu escrevendo por três anos. Em uma delas, ainda em viagem, ele dizia procurar o rosto de Bianco.

“Às vezes não consigo vê-lo como é, e então aperto com as duas mãos o rosto, acaricio-o, e em meu rosto renasce-me o seu em minhas mãos.”

Em outro trecho, parece ver a si mesmo com modéstia. “Não sou nada mais do que um pequeno poeta deste século, no qual até os maiores não podem ser mais do que pequenos poetas.”

Além da beleza da prosa de um dos maiores poetas italianos do século 20, as cartas trazem um Ungaretti que por vezes assume um tom professoral diante de uma jovem que se inicia na literatura —e ajudam a entrever, por isso, seu pensamento sobre arte.

O poeta contava à namorada de sua vida nômade —nasceu no Egito, estudou na França e só aos 20 anos foi para a Itália— e da pobreza, depois de ter perdido o pai criança e a mãe ter sustentado a família com uma padaria.

O autor, que construiu tantos versos sobre a luz, às vezes chama a amada de “mia luce cara” —minha querida luz. “Sei que a amo, e que, mesmo com os anos que me pesam, amar pode ser um absurdo, mas é luz, luz”, escreveu.

Ungá tinha 52 anos a mais que Bianco —não é à toa que, ao fim de algumas missivas, assina como “o teu antigo”.

“Hoje, com a idade dele quando me conheceu, eu me sinto tão cheia de energia, que entendo ainda mais que eu pudesse amar uma pessoa [daquela idade]. O vigor que sinto em mim é o vigor que ele me transmitia”, diz Bianco.

A correspondência ajuda a sepultar uma antiga polêmica. Em 1996, um artigo do jornal Corriere della Sera acusava Ungaretti de ter plagiado James Joyce em seus poemas de “Diálogo”. Nas cartas, é possível ver que Ungá os traduzia para Bianco —e os recriava.

“Eram textos de poesia e, esperando o sono, não os traduzi, mas tentei sua imitação e talvez sejam composições, ou melhor, poemas, completamente diferentes”, escreveu.

O namoro acabou de vez em 1969. Naquele ano, corriam boatos de que Ungaretti seria o vencedor do prêmio Nobel de Literatura —e o poeta dizia esperar o dinheiro para pedir a mão de Bianco.

Ele até deixou de vir ao Brasil para visitá-la, tinha medo de que a viagem fosse vista pela Academia Sueca como apoio ao regime militar. Mas quem venceu foi Beckett.

Por que então ele acreditava tão fortemente que venceria? Questionada sobre isso, Bruna Bianco mostra um documento inédito —uma carta, não incluída no livro, assinada pela tradutora italiana Anna Sanavio, que também era cidadã sueca.

Sanavio, com contatos nas elites culturais de Estocolmo, fala de seu trabalho de lobby pela escolha do amigo. Ela entregaria datiloscritos com os poemas de Ungá, traduzidos para o francês, aos acadêmicos suecos. A tradutora relata que faria contatos com amigos no comitê do Nobel, incluindo o secretário-permanente da Academia à época.

O poeta ficou amargurado, e Bianco, magoada por ele ter desistido de vir ao Brasil pedi-la em casamento. Sem motivo aparente, as cartas que ela mandava se extraviavam. Em dezembro de 1969, quando o autor se deu conta de que ela não o havia ignorado, convidou-a para ir a Nova York encontrá-lo, mas Bianco não foi.

Em junho do ano seguinte, Ungá morreu. Na última carta enviada a Bianco, veio junto o livro “Il Dolore”, com as inscrições: “Meu amor por você / arde sempre, sob as cinzas”.

Lettere a Bruna

  • Preço € 21 (R$ 93, 708 págs.)
  • Autoria Giuseppe Ungaretti.
  • Editora Mondadori
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