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Artes Cênicas

'Prólogo Canino-Operístico' tem atuação densa, porém hermética

Monólogo de Marcelo Castro é adaptado do poema de Carlito Azevedo

O ator Marcelo Castro em cena do monólogo "Prólogo Canino-Operístico", baseado no poema de Carlito Azevedo
O ator Marcelo Castro em cena do monólogo "Prólogo Canino-Operístico", baseado no poema de Carlito Azevedo - Solomon Plaza/Divulgação
BRUNO MACHADO

Prólogo Canino-Operístico

  • Quando Qui. e sex., às 21h30. Até 24/8
  • Onde Sesc Ipiranga - auditório, r. Bom Pastor, 822
  • Preço R$ 6 a R$ 20
  • Classificação 16 anos

Texto e intérprete podem ser considerados elementos fundamentais de qualquer encenação. Mais do que em qualquer outro formato, no monólogo, operam em conjunto: evidenciam-se mutuamente, se retroalimentam.

Em "Prólogo Canino-Operístico", adaptação do poema de Carlito Azevedo, essas duas unidades —autor e ator— não estão apenas expostas, mas colocadas em fricção.

O solo apresenta um cão, interpretado por Marcelo Castro, preso a um tablado —um "cubo quântico e paradoxal", como prefere o autor—, onde é obrigado a se apresentar à plateia. Nu em cena, o ator revela a vulnerabilidade do personagem sob as luzes do palco e o escrutínio do público.

Diretor, adaptador e intérprete, Castro oferece ao poema de Azevedo uma nova camada: parece haver em cena uma tensão entre dar voz ao texto, ideias e visão de mundo alheios, e se apropriar da obra literária como veículo para os próprios anseios artísticos.

Mais do que interpretar o texto, Castro parece desafiá-lo —bem como a noção de autoridade contida na figura autoral. Tal embate, que é também entre o teatro e a literatura, permite entrever o drama latente no poema.

Como provocação, mais de uma vez o personagem afirma que o autor deveria estar em cena, evidenciando que as palavras ditas por ele pertencem a um outro, ausente.

Em meio à tensão, a figura canina surge aparentemente conciliadora. Castro cita Grace Passô, colaboradora artística na montagem, para quem o cão representa a verdade.

Tal qual um cachorro, a noção de verdade foi domesticada pela moral e aprisionada entre as quatro paredes da cultura. Homem e verdade afirmam-se reciprocamente, de modo que a metáfora do cão sugere uma relação de interdependência.

Reafirma-se, então, a velha simbiose entre literatura e teatro: o texto existe por si só, mas ganha vida quando lido pelo ator. Este, por sua vez, cumpre seu destino quando animado pela criação dramatúrgica.

Contudo, as tensões propostas não se dissolvem. Ainda que expoentes das artes surjam em citações, como o poeta Vladimir Maiakóvski, o cineasta Jean-Luc Godard e o pintor Paul Cézanne, a ausência da figura autoral os ofusca e se impõe.

Paradoxalmente, ao sublinhar a ausência da autoria, o personagem, na verdade, ratifica a sua onipresença —fantasma que ronda a cena, como eco de um célebre artigo em que Roland Barthes decreta a morte do autor.

O espetáculo traz também discussões mais imediatas e palpáveis, para além do âmbito da arte, como a explosão das fake news, que instrumentalizam e põem em xeque as noções de autoria e verdade.

Por vezes, o solo sugere a tomada à ação —rebelar-se contra a ordem estabelecida e o autoritarismo, suscitados pela figura autoral—, mas prevalece um tom intelectual que, ocasionalmente, resvala num hermetismo do qual o intérprete não consegue escapar. Mesmo assim, ao imprimir dramaticidade ao poema, Castro o apresenta em toda a sua densidade, em pungente atuação.

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