Descrição de chapéu Artes Cênicas

Rodrigo Lombardi e Sérgio Mamberti estreiam peça crítica ao sonho americano

'Um Panorama Visto da Ponte', de Arthur Miller, só havia sido encenado no Brasil há 60 anos, pelo TBC

MLB
São Paulo

Sérgio Mamberti era garoto, ainda estudante da Escola de Arte Dramática, quando acompanhou os ensaios e a estreia de "Um Panorama Visto da Ponte", peça do americano Arthur Miller em montagem do Teatro Brasileiro de Comédia, em 1958.

"Foi uma estreia muito intensa, certamente uma das pérolas de todo o repertório do TBC", lembra o ator paulista, hoje com 79 anos.

"Essa peça ficou marcada como algo muito especial [tinha no elenco nomes como Nathália Timberg, Sergio Britto, Miriam Mehler, Ítalo Rossi e Fernanda Montenegro], e por isso mesmo eu achava estranho que ela não tivesse mais sido montada no Brasil."

Sessenta anos depois, é Mamberti quem sobe ao palco, a partir desta sexta-feira (3), na segunda encenação nacional do texto, agora produzido por seu filho Carlos.

O ator interpreta Alfieri, advogado que trabalha em Red Hook, comunidade proletária no Brooklyn nova-iorquino e que, naqueles anos 1950, era tomada por imigrantes.

Em meio às docas do bairro, vive a família do estivador Eddie Carbone (Rodrigo Lombardi). Logo acolhem em sua casa parentes vindos da Itália, imigrantes ilegais dispostos a fazer dinheiro na América.

Um deles, o jovem Rodolpho (Bernardo Bibancos), causa certo incômodo em Eddie. Não é exatamente um trabalhador braçal e esforçado como os demais. Prefere curtir a noite da cidade, ir ao cinema, comprar roupas da moda e cantar e dançar por aí.

Para piorar, o rapaz se enamora de Catherine (Gabriella Potye), sobrinha de Eddie, que cuida dela como um pai desde que a garota ficou órfã.

Mas esses aspectos pessoais e psicológicos dos personagens de Miller (1915-2005), expoente do realismo americano, servem na realidade de base para a sua crítica social. Há em especial um olhar cético ao sonho americano e suas promessas de prosperidade.

 

Seu teatro espelha o impacto das crises históricas de sua época, como a Grande Depressão, o Holocausto, o macarthismo e a política de delações estabelecida pelo governo dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, afirma Maria Sílvia Betti, professora de dramaturgia americana na USP.

O engajamento político do dramaturgo, comenta a estudiosa, já vinha de sua formação na Universidade de Michigan, em Ann Arbor, importante centro ativista de esquerda.

"O que interessa a Miller não é examinar uma suposta vitimização do indivíduo, e sim investigar os meios pelos quais esse indivíduo rende tributo incondicional aos próprios mecanismos que o alienam e exploram."

Para Lombardi, o autor resume sua tese já no local onde ambienta "Panorama", bairro logo abaixo da ponte do Brooklyn, que conecta o distrito ao centro rico de Manhattan.

"As pessoas passam ali e têm aquela visão de cima, distante. O espetáculo dá um foco numa comunidade que ninguém para para pensar que existe."

Um recorte que inspirou trabalhos diversos. Luchino Visconti, que dirigiu em 1958 uma montagem da peça na Itália, se inspirou nela para seu filme "Rocco e Seus Irmãos" (1960).

A dramaturgia de "Panorama" é uma costura delicada, como fios de um tecido, diz Zé Henrique de Paula, diretor da nova montagem. "Quanto mais estudamos a peça, mais percebemos que a sua trama é composta de diversas fibras."

Miller alude ali à imigração ilegal nos EUA, ao desejo, à honra, aos conflitos geracionais e ao sistema judiciário, em especial a caça às bruxas do período macarthista —Eddie, perturbado com Rodolpho e suas investidas em Catherine, entra em crise e questiona se deveria denunciar o garoto às autoridades.

Além, é claro, de pincelar comentários irônicos sobre o ideal americano. Já de início, Alfieri diz com sarcasmo que aqueles imigrantes, uma vez na América, tornaram-se todos "bem civilizados".

Marco (Antonio Salvador), um dos italianos recém-chegados, afirma em dado momento não mais "entender esse país", que propagandeia um sonho de prosperidade, mas ao mesmo tempo exige uma moral conservadora, castra as liberdades individuais.

"São personagens que abnegaram suas casas, suas famílias, em troca de ganhar dinheiro em outro país", afirma o diretor, que, para a sua montagem, ainda se baseou em "Réquiem para o Sonho Americano", do filósofo Noam Chomsky, discussão sobre a utopia do neoliberalismo. "Há uma crítica forte a esse ideal."

Mais do que isso, Miller faz em "Panorama" uma estrutura semelhante à das tragédias gregas, uma de suas inspirações dramatúrgicas.

Eddie é como o herói trágico, um homem honrado, valoroso, mas colocado numa situação em que precisa testar a sua integridade. Alfieri, que também narra e comenta a história, faz a função do coro.

"O espetáculo é construído quase como uma partitura, é uma peça-concerto", diz Mamberti, que além de "Panorama" já adquiriu com o filho os diretos autorais de "A Morte do Caixeiro Viajante" (1949) --uma das obras mais conhecidas de Miller, reflete a crise econômica de 1929 que afetou o pai comerciante do autor.

Aqui, a dimensão trágica de "Panorama" se reproduz no cenário de Bruno Anselmo, uma estrutura que emula contêineres e cobre o palco de alto a baixo, fazendo as vezes tanto das docas como dos cômodos das casas e das ruas.

"É um pouco do conceito de palco nu do [diretor britânico] Peter Brook", diz Mamberti. À exceção de Alfieri, uma figura de fora, todos os personagens estão descalços, como se transitassem dentro de casa.

As interpretações foram criadas a partir de improvisos e construções abstratas. Assim, os sentimentos por vezes se traduzem no corpo, como um gesto contorcido quando se fala de um assunto dolorido.

Uma maneira de desmembrar os nós urdidos da dramaturgia de Miller.

Um Panorama Visto da Ponte

  • Quando Sex., às 21h30, sáb., às 21h, dom., às 18h. Até 25/11
  • Onde Teatro Raul Cortez, r. Dr. Plínio Barreto 285
  • Preço R$ 80
  • Classificação 14 anos
Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.