Descrição de chapéu

Suspense 'O Animal Cordial' dispensa convenções e surpreende

Filme apresenta microcosmo onde as máscaras caem ao mesmo tempo em que se desenha a tragédia

Inácio Araujo

O Animal Cordial

  • Quando Estreia nesta quinta (9)
  • Classificação 18 anos
  • Elenco Murilo Benício, Luciana Paes, Camila Morgado
  • Produção Brasil, 2017
  • Direção Gabriela Amaral Almeida

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A primeira reação pode ser de desconfiança: um filme de suspense cujo argumento tem como base a onda de assaltos a restaurantes que aconteceu (acontece ainda?) em São Paulo? É tão fácil sair daí um desses roteiros que já nascem mofados, marcados por um naturalismo dos anos 1930... Com Murilo Benício? De novo? Mais uma interpretação preguiçosa, relaxada...

Bem, o fato é que não demora para as expectativas se inverterem. O dono do restaurante, Inácio (Benício), e a garçonete Sara (Luciana Paes) conversam atrás do balcão a respeito dos hábitos de um freguês. Experimentamos uma estranha familiaridade com a situação, mas não sentimos que os atores estejam imitando profissionais do ramo.

Essa sensação é reforçada um pouco depois, quando vemos Inácio se desdobrando em mesuras para agradar os clientes, com aquela máscara de simpatia tão característica. Pensamos: não é mesmo imitação. Existe algo de verdadeiro aí.

Quase todo o restante do filme ajudará a reforçar essa ideia: desde o casal pedante que chega quase na hora de fechar a cozinha com exigências extravagantes até o assalto propriamente dito.

O que vem a seguir confirma o que havia de melhor na expectativa criada pelas primeiras cenas. Não estamos diante de bons burgueses violentados pelas armas de malfeitores. Mas também não estamos frente a pobres desempregados que, por necessidade e sem traquejo, invadem o restaurante apenas para sobreviver mais uns dias.

Gabriela Almeida Amaral dispensa essas convenções. Em vez disso, lança o espectador em uma espécie de microcosmo onde as máscaras caem ao mesmo tempo em que se desenha a tragédia.

Assim, vemos Inácio aproveitar um descuido dos assaltantes e acertar um tiro certeiro em um deles. É quando começa a cair a máscara dos personagens. A de Inácio antes —e mais do que todos.

Em vez do servil restaurateur que ensaia diante do espelho as caras e palavras com que supõe seduzir um crítico que virá dali a dois dias, vemos um homem capaz de reagir com vigor a um assalto.

Não é só ele nem é só isso que acontece. Depois de acertar o assaltante, Inácio não chama nem ambulância nem polícia. A partir daí, as reações são não raro surpreendentes. Seria possível dizer que o filme nos leva ao íntimo dos personagens, mas não é o caso: não há íntimo, porque não há psicologia envolvida.

As reações são inesperadas, animais como os personagens. Sara, por exemplo, em vez da funcionária eficiente que aparentava ser se mostra logo pessoa tomada por uma ambição que o tempo mostrará ora desmedida ora francamente insana.

Para mostrar a transformação desses seres cordialmente hipócritas não será o caso de evocar nem Marx nem Freud. É antes do lado de Georges Bataille que as coisas caminham: do lado dessa proximidade entre morte e prazer.

Isso está na cozinha: no coelho decepado e depois servido à mesa. Mas está na sequência de sexo entre Sara e Inácio: é banhados em sangue que eles se amam, numa das mais originais cenas de sexo do cinema nos últimos tempos e, certamente, uma das mais intensas e mais belas.

Ao mesmo tempo em que controla muito bem as intensidades, as cores e sons de seu suspense, a diretora-roteirista sabe levar seus atores com muita precisão.

Se Luciana Paes volta a se afirmar como um rosto digno de suceder Glauce Rocha, Murilo Benício cria um personagem como em seus primeiros tempos (pré-novelas, pré-filmes insignificantes), enquanto Irandhir Santos também é tirado da zona confortável de boa parte de suas atuações (faz um cozinheiro gay, tão incisivo quanto sem trejeitos inúteis).

"O Animal Cordial" é um filme com capacidade de chegar facilmente a um público amplo e de agradá-lo como, no passado, William Wyler com "Horas de Desespero" (1955).

Pois é do registro do thriller em um só local e com sequestros que se trata (bem clássico, portanto). A questão é saber se, com a legislação cinematográfica torta que existe no Brasil, isso poderá se tornar ao menos possível.

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