Uruguaio utiliza humor para criticar ditadura em 'A Outra História do Mundo'

Ator de Montevidéu, César Troncoso alterna filmes em seu país e no Brasil

Naief Haddad
São Paulo

Estamos no início dos anos 1980, no Uruguai. Assim como os vizinhos Brasil e Argentina, o país vive sob uma ditadura militar.

No comando de uma pequena cidade, um coronel intempestivo decide fechar os bares às 22h para a tristeza de Esnal (César Troncoso) e Milo (Roberto Suarez), amigos de longa data.

Os dois preparam uma vingança, o sequestro dos anões de jardim do coronel. Mas o plano dá errado, e Milo desaparece. O que será de Esnal?

É assim, de modo insólito, que começa "A Outra História do Mundo", dirigido pelo uruguaio Guillermo Casanova. O filme chega nesta quinta (2) aos cinemas brasileiros.

Para Troncoso, que falou à Folha em passagem recente por São Paulo, o humor não é só uma demonstração de inteligência. Também contribui para a assimilação por por um público mais amplo de temas áridos, como o comportamento de regimes autoritários.

"Há muitos que não querem saber de assuntos dramáticos. 'Minha vida já é sofrimento', dizem. Aqui [no filme], não tem desculpa", brinca.

Nascido há 55 anos em Montevidéu, Troncoso é o mais brasileiro dos atores uruguaios. Depois de boa participação no filme "O Banheiro do Papa" (2007), de César Charlone, ele foi convidado para participar de um curta gaúcho.

Em seguida, vieram longas como "Em teu Nome" (2009), de Paulo Nascimento, e "O Tempo e o Vento" (2013), de Jayme Monjardim. Já são mais de dez filmes rodados no Brasil em apenas uma década, além da novela "A Flor do Caribe", da Globo.

Nesse trânsito intenso entre os dois países, Troncoso se sente à vontade para falar dos anseios políticos de lá e de cá. Para ele, a atualidade de "A Outra História do Mundo" está, sobretudo, na nostalgia dos tempos de ditadura em países sul-americanos.

Segundo o ator, o movimento é mais nítido no Brasil do que no Uruguai, o que não significa ausência de expressões favoráveis a um regime autoritário em seu país natal.

"A ditadura uruguaia não matou tanto quanto a argentina, mas torturou, levou muitos pra cadeia injustamente."

Dados oficiais indicam pouco mais de 200 desaparecidos durante a ditadura uruguaia (1973-1985) e pelo menos 9.000 no regime militar argentino (1976-1983). No Brasil, a Comissão da Verdade apontou 434 mortos ou desaparecidos no mais recente período autoritário (1964-1985).

No papel de um homem disposto a ridicularizar as ordens do quartel em "A Outra História do Mundo", Troncoso foi considerado o melhor ator no Festival de Miami deste ano.

Essa conquista se juntou a outros prêmios, obtidos em filmes como "A Oeste do Fim do Mundo" (Brasil, 2013).

A carreira bem-sucedida é surpreendente para um ator de estreia tardia no cinema. Ele pôs os pés pela primeira vez em um set de longa-metragem em 5 de abril de 2003, dia em que fazia 40 anos. O filme era "El Viaje Hacia el Mar", também de Casanova.

Àquela altura, Troncoso já havia atuado em diversas peças de teatro em Montevidéu, mas pagava as contas com o trabalho em um escritório de contabilidade, onde ficou por mais de duas décadas.

Anos depois, durante as filmagens do drama argentino "Infância Clandestina" (2011), ele recebeu um convite da cineasta paulistana Tata Amaral para atuar em "Hoje" (2011).

Em dúvida, escreveu para sua mulher: "Tenho que pedir mais um mês de férias no escritório, o chefe vai me matar! Será que eu deixo tudo?".

Ela concordou, e a contabilidade perdeu um funcionário.

Embora continue fazendo filmes no seu país, Troncoso enfatiza a segurança que o cinema brasileiro lhe oferece.

Com 3,4 milhões de habitantes, o Uruguai tem um circuito exibidor modesto. O caminho para a viabilização dos filmes, segundo ele, são as coproduções —é o caso de "A Outra História do Mundo", que une Uruguai, Brasil e Argentina.

Troncoso recorre à expressão "atarlo con alambre" (amarrá-lo com arame) para comentar a produção pequena, mas contínua, do cinema do seu país. "Não vamos conseguir fazer com a ferramenta necessária, mas encontraremos um jeito", afirma.

Ele chama a atenção para cineastas uruguaios como Enrique Buchichio, com quem fez "Zanahoria" (2014), e Álvaro Brechner, que o dirigiu recentemente em "La Noche de 12 Años". Esse último, aliás, será exibido na seção Horizontes do festival de Veneza, no fim de agosto.

Já na mostra de Gramado, também em agosto, Troncoso estará em duas produções brasileiras, "Benzinho", de Gustavo Pizzi, e "O Avental Rosa", outro trabalho sob a direção de Jayme Monjardim.

Na tentativa de explicar a sequência de filmes feitos no Brasil, o ator embaralha ironia e despretensão —como faz, aliás, ao longo de toda a entrevista. "As pessoas acreditam no meu talento e acho que eu não atrapalho muito no set, não há crises comigo."

 

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