Voo público do 14 Bis é reconstituído em gravação de série sobre Santos Dumont

Produção da HBO enfrenta carrapatos e acidente com réplica em filmagem

João Pedro Zappa como Santos Dumont em filmagem da série "Santos Dumont, Mais Leve que o Ar", da HBO
João Pedro Zappa como Santos Dumont em filmagem da série "Santos Dumont, Mais Leve que o Ar", da HBO - Ana Rodrigues/Divulgação
Gustavo Fioratti
São Paulo

Quando fez oito anos, Alan Calassa, 57, ganhou de seu pai 10 mil cruzeiros para comprar roupas, mas a própria nota era bonita demais para ele se desfazer dela. 

O empresário conta que ficou vidrado nos desenhos estampados na cédula —de um lado, a imagem do 14 Bis, um dos primeiros aviões do planeta; no verso, a figura de seu inventor, o pai da aviação, Alberto Santos Dumont.

No set de “Santos Dumont: Mais Leve que o Ar”, título provisório para série que a HBO está desenvolvendo no Rio de Janeiro —ainda sem data de estreia— ouvia-se o tempo todo o nome dele. Era Calassa pra cá, Calassa pra lá. 

Hoje proprietário de uma fábrica de aviões em Goiás, o empresário se tornou um especialista nas invenções de Dumont. Os criadores da série recorreram a ele, especialmente para rodar cenas com as réplicas do maquinário.

Além do 14 Bis, Santos Dumont criou dirigíveis, o relógio de pulso, um canhão para jogar coletes salva-vidas ao mar. Filho de um cafeeiro rico, dirigiu locomotivas na adolescência. Consertava máquinas de costura e virou obcecado pelo progresso. Depois dos 20, ele se relacionou com balonistas franceses e decolou como pioneiro da aviação. 

Este repórter acompanhou a gravação de um átimo dessa trajetória no campus da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, no fim de julho, toda ela centrada em um feito histórico —reproduziu-se, em um extenso gramado, o voo curto que o 14 Bis realizou em 23 de outubro de 1906, no campo de Bagatelle, em Paris. 

Cerca de mil pessoas viram o original, marco na história da aviação depois apelidado como o voo da galinha. No dia da gravação, dezenas de figurantes transitavam com trajes da belle époque; produtores, diretores, maquiadores e cinegrafistas também exibiam marcas de coceira nas canelas e pernas. O campo estava cheio de carrapatos. 

A réplica utilizada na gravação era uma das três que Calassa construiu. A primeira saiu do forno em 2004 e está no Musée de L’Air, em Paris; a segunda ficou no Museu do Ar, em Sintra, Portugal. A que a série utilizou fica guardada no hangar do dono em Caldas Novas, no interior de Goiás. 

O voo tão esperado do dia não decolou porque a bequilha do 14 Bis, espécie de trem de pouso feito de bambu, quebrou antes, gerando frustração generalizada. Havia gente que estava ali apenas para ver o rasante de 60 metros de comprimento a cerca de três metros em relação ao solo. 

Com o avião em movimento, a parte da frente encontrou um buraco. Ouviu-se de longe o bambu dobrar.
Embora pareça frágil e desengonçado, não é comum acontecer de o 14 Bis quebrar daquele jeito, diz Calassa. “No calor da batalha das filmagens, às vezes, a gente ultrapassa os limites. Eu tinha que ter colocado uma roda um pouquinho maior; aquela rodinha era para o asfalto.” 

O próprio empresário estava na pilotagem. Trabalhava como dublê de João Pedro Zappa, um dos três atores que interpreta Santos Dumont. Com bigode falso, Zappa faz o aviador na fase adulta. Sem bigode, faz o jovem encantado com o mundo das máquinas.

Sabe-se muito e pouco sobre Dumont, essa é a sensação dos diretores Fernando Acquarone e Estevão Ciavatta. 

Existe fartura de material sobre suas criações, incluindo publicações em jornais e revistas de época. Sua figura ficou conhecida internacionalmente, com homenagens de governos e militares, incluindo encontros com o presidente americano Theodore Roosevelt e o empresário e inventor Thomas Edison.

“Esses pontos são claros, nossa dificuldade foi como que a gente podia uni-los”, diz Acquarone, sobre as lacunas que o perfil recluso de Dumont deixou sobre sua própria vida afetiva. Uma das questões ainda latentes é sua sexualidade. Muita gente aposta que ele era gay.

Os roteiristas empurraram a série para mais próximo de uma ficção quando desenvolveram questões referentes a sua amizade com Georges Goursat, caricaturista francês conhecido como Sem, e com Aída de Acosta, primeira mulher a voar em um dirigível, o número 9 de Dumont.

“Com essas duas amizades, a gente estabelece essa ambiguidade [da vida sexual do aviador]. A gente não deixa a questão da sexualidade explícita. Ele parece ser muito íntimo do Sem e ter uma mistura de medo e desejo pela Aída.”

Segundo Ciavatta, ficaram entre o retrato de um homem frágil e outro viril. “Mas não podia ser frágil, o que ele tinha, talvez, era uma fobia social, a personalidade de alguém que gostava de ficar dentro de seu próprio universo, no pensamento matemático”, diz.

Acquarone diz que também fica menos precisa a motivação por trás do suicídio, tradicionalmente atribuída à utilização do avião como arma bélica e a decorrente decepção de achar que ocasionou a morte inclusive de brasileiros.

“A gente acha que [o suicídio dele] é resultado de vários fatores, não só desse desencanto. Dumont era doente, tinha esclerose múltipla, o que pode ter provocado, além de disfunção motora, bipolaridade, euforia, depressão.” Ele lembra que a mãe de Dumont também se suicidou em 1902.

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