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Artistas como Criolo recriam e suavizam obras politicamente incorretas

Mano Brown parou de cantar música machista; Devotos do Ódio cansaram de odiar e viraram Devotos

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Alex Kidd
João Paulo Martins
São Paulo

Em tempos em que se discute a intolerância e o politicamente correto, artistas e indústria cultural tentam voltar no tempo, alterando o teor ou deixando de lado obras pregressas, para evitar saias justas no presente.

Dez anos depois de estrear com “Ainda Há Tempo”, o rapper Criolo relançou o disco e alterou a letra da música “Vasilhame”. A canção original de 2006, que dizia “os traveco tão aí! Alguém vai se iludir”, foi substituída por “o universo tá aí! Alguém vai se iludir”. 

O relançamento do álbum surgiu em meio à efervescência dos debates sobre questões LGBT, em que o termo “traveco” já havia caído em desuso como exemplo de mau vocabulário. Procurado, o cantor não quis comentar.

Mano Brown também já apresentou uma versão mais branda de si mesmo. No ano passado, o rapper disse que não canta mais músicas que considera machistas. Na ocasião, o líder dos Racionais MC’s citou a faixa “Mulheres Vulgares”, do disco “Raio X Do Brasil”, como exemplo.

A letra, que diz “Mulher? Que tipo de mulher? / Se liga aí: Derivada de uma sociedade feminista / Que considera e dizem que todos somos machistas”, marca uma época em que os então jovens da periferia eram conhecidos por sua postura agressiva.

No começo de setembro, Hayley Williams, líder da banda americana Paramore, declarou que o grupo deixará de tocar ao vivo seu primeiro hit, “Misery Business”, por causa dos versos “uma vez vadia, você não é nada além disso”.

A cantora se justificou dizendo que, quando compôs a canção, tinha apenas 17 anos, e que a letra da música não a representa mais.

A questão chegou até o punk rock.

Preocupados com a imagem negativa, os pernambucanos da banda Devotos do Ódio, que completa três décadas neste ano, reapareceram na cena apenas como Devotos, no início dos anos 2000.

Segundo o vocalista Cannibal, o grupo não precisa mais de uma identidade tão agressiva. “Quando a banda começou, a proposta era chocar. Hoje em dia, penso que o nome faz propaganda gratuita do ódio, por isso mudamos. Mas o discurso permanece o mesmo e o conteúdo das letras também.”

Devotos do Ódio - Cannibal, Neilton, Celo Brown. - Divulgação

Para Verena Peixoto, consultora de marketing da Fundação Itaú Social, que desenvolve projetos de educação e cultura, o universo corporativo influencia muito a repaginação em versões mais light.

“Os departamentos de marketing se tornaram patrulhas ideológicas e da censura. 
Todo artista que produz é apenas visto como um produto, não como algo relevante de fato. E, quando pregam diversidade, na verdade, estão sendo mentirosos e hipócritas. Os artistas representam hoje interesses meramente mercantis.”

O politicamente correto e o cuidado com a imagem também se estendem à televisão.

No final de maio, a cantora Iza —um dos novos talentos do pop nacional— alterou a faixa “Ginga”, de seu disco “Dona de Mim”, quando se apresentou no Programa do Porchat e no Programa da Sabrina, da Record, emissora do bispo Edir Macedo.

Na ocasião, a faixa foi cantada sem os versos “fé na sua mandinga, na roda e ginga”. Iza também não quis comentar o ocorrido.

Em janeiro deste ano, o Multishow anunciou a compra dos direitos de exibição dos seriados mexicanos “Chaves” e “Chapolin”, incluindo episódios clássicos e inéditos. Historicamente exibidas pelo SBT, as séries estrearam na televisão brasileira em 1984.
 

Transmitido pela primeira vez em 1973, no México, o episódio “O Descobrimento da Tribo Perdida”, de “Chapolin”, ganhou dublagem diferente.
 

Na versão original, um personagem interpretado por Carlos Villagrán (o Quico) diz em cena: “Se eu soubesse disso, teria chamado o Batman!”. O herói mexicano se vira e rebate: “Em primeiro lugar, o Batman está em lua de mel com o Robin”.
 

Na nova dublagem feita pelo canal pago, o diálogo ficou “o Batman não pôde vir porque furou o pneu do batmóvel”.

No último dia 15, a emissora exibiu o episódio no formato original, com a piada da lua de mel com Robin. 

À Folha, o canal informou que suas decisões são tomadas procurando não desrespeitar os fãs. “Vamos entendendo o limite dentro do humor. A linha é muito tênue e, por isso, uma decisão sempre difícil de tomar”, diz nota.

Ainda no campo da homofobia, o rapper americano Eminem declarou ter se arrependido de usar a palavra “faggot” (bichinha) na letra de “Fall”, canção que integra seu último disco de inéditas, “Kamikaze”, lançado no final de agosto. Na letra, ele responde a uma provocação de outro rapper, Tyler The Creator.

A versão atual de “Os Trapalhões”, exibida pelo canal Viva desde o ano passado, tem um humor bem distinto do programa original.

Na série exibida pela Globo entre 1977 e 1995, o personagem de Renato Aragão, Didi, se referia a Mussum usando termos como “criolo” e “frango de macumba”. O humorista, quando chamado de “negão”, imediatamente rebatia: “Negão é teu passadis”.

A versão nova, que tem Lucas Veloso, Bruno Gissoni, Mumuzinho e Gui Santana interpretando os sobrinhos do quarteto original, possui roteiros com piadas menos agressivas.   

 

A nova temporada exibida pelo canal pago não só aboliu esse tipo de referência, considerada racista, como também evitou menções explícitas ao álcool em seus episódios —marca do personagem de Mussum.

Para o filósofo Joel Pinheiro da Fonseca, colunista da Folha, o politicamente correto atende a um discurso de minoria e não se relaciona com valores que se modificaram na sociedade.

"Criou-se hoje uma espécie de autocensura moral, imposta de forma bastante autoritária.”

De acordo com ele, a arte só tem a perder com essa prática.“Vivemos uma nova moral castradora dos impulsos artísticos.”

 
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