No subterrâneo, em plataformas abandonadas de metrô, praticantes de kung-fu liderados por uma sacerdotisa creem que seus movimentos são uma comunicação superior com a verdade. Numa torre entre ruínas, um ditador comanda seu povo pelo medo.
Ambientado em um mundo pós-apocalíptico onde os recursos são escassos, “Os 3 Mundos”, com direção de Nelson Baskerville, cria uma narrativa ficcional que evidencia distintas formas de manipulação e suas consequências.
Os quadrinistas Fábio Moon e Gabriel Bá assinam a dramaturgia. É a atmosfera das HQsque dá o tom da encenação. O trabalho do coletivo BijaRi nas projeções e animações —com ilustrações de Guazzelli— torna o cenário camada fundamental da obra.
Por vezes páginas a serem lidas, as telas na frente e no fundo do palco inserem as personagens naquele universo. Também, nas cenas de ação, a rotação dos objetos projetados propõe um jogo cinematográfico para as coreografias.
Há a necessidade de que o espectador aceite o pacto de ilusão. Os procedimentos estão aparentes, mas uma nova convenção se instaura: a representação das lutas é assumida como parte do universo das HQs, amparada pelos recursos cênicos. Há, ainda assim, certo estranhamento.
Quanto às interpretações, Baskerville permite a construção bem distinta dos protagonistas. Thiago Amaral faz de seu Acônito, o governante do mundo das máscaras, um bufão que parece inspirado nos vilões tradicionais dos quadrinhos. Já Paula Picarelli aposta em uma entonação assertiva e repetitiva para Lachesis, a sacerdotisa do grupo da serpente —a atriz se alterna com Bruna Longo no papel.
Além dos dois, o elenco traz um coro que faz as vezes dos seguidores dos dois líderes.
Ao passo que os membros de um dos grupos utilizam máscaras e aparentemente não possuem identidades pessoais, os do outro parecem abrir mão de suas individualidades em nome de algo maior.
O coro evidencia as duas formas de dominação que fazem uso de ferramentas fascistas de apagamento do sujeito. Em ambos, há violências tremendas. Assim, “Os 3 Mundos” discute não apenas questões sobre representatividade e autoridade, mas a ideia de ser governado por outrem.
Seja conduzido pela fé cega, esperançosa, ou pelo medo, pragmático, o destino daqueles seres parece ser o mesmo. Com uma crítica escancarada ao hiperconsumo, o espetáculo deixa pistas de qual seria o terceiro mundo do título.
Ainda que as idas e voltas temporais possam gerar certa confusão, é em uma delas em que há o único momento de quebra com a ficção. Esta parece sugerir a distância entre os indivíduos e o poder real; a impossibilidade de uma ação concreta. No entanto, ao escolher trazer o punk rock para a cena final, a obra parece realizar uma ode à anarquia.
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