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Em livro, atriz conta experiência e decepção com o Santo Daime

Fragilidades me fizeram entrar de cabeça, diz Paula Picarelli

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A atriz e escritora Paula Picarelli
A atriz e escritora Paula Picarelli - Bruno Poletti/Folhapress
São Paulo

“Estou completamente pegada e penso, agora como o narrador de um filme de terror trash: ‘Estou em transe e vou passar mal em rede nacional’.” Você começaria uma conversa com seu velho assim? Pois Paula, uma jovem atriz de novela da Globo, precisou tocar no assunto.

Até especulou o que passava pela cabeça do pai quando revelou que tomava chá de ayahuasca —infusão de uma planta e um cipó amazônicos— numa comunidade do Santo Daime frequentada por celebridades em São Paulo. E olha que ela virava a bebida espessa e amarronzada, “como se tivesse terra misturada ali”, com a voracidade de uma tia adepta da “birinight” (pinga com o vermute Cinzano).

“Ele pensando por que uma menina que não passara por nada mais dramático que lidar com o nascimento de uma irmã e perder o posto de filha única loira tinha ido parar numa história daquelas.” Afinal, Paula sempre teve tudo: “Todas as Barbies e casas da Barbie e carros, piscinas, até a loja de chapéus da Barbie”.

Paula é a protagonista de “A Seita - O Dia em que Entrei para um Culto Religioso”. Já Paula Picarelli é a autora de “A Seita - O Dia em que Entrei para um Culto Religioso”. São e não são a mesma pessoa.

A saga contada no título está naquela categoria de ficções que tiram a vida real para dançar. Picarelli de fato atuou numa novela com enredo similar ao do folhetim do livro —foi a Rafaela  de “Mulheres Apaixonadas” (2002), par da personagem de Aline Moraes, isso 12 anos antes de a emissora transmitir seu primeiro beijo gay para valer (o delas foi só um selinho).

E a Paula real, assim como sua homônima na literatura, também enveredou por rituais daimistas. Por oito anos, foi a cerimônias que envolviam elementos do cristianismo (vários hinos citam Jesus e a Virgem Maria) e a ingestão da ayahuasca. Saiu de lá brigada com todos, convencida de ter participado de uma seita sob guarda de uma charlatã.

“Tive fragilidades que me fizeram entrar de cabeça no Daime”, conta à Folha numa  padaria da zona oeste paulistana. Então na casa dos 20 anos, sentia-se “uma burra, rodeada por pessoas muito mais inteligentes”, fora padecer daquela “vaidade de ser especial” tão comum em seu ofício. “Como atores, nós somos carentes e vaidosos”, afirma.

A Paula do livro começa pagando R$ 90 para beber o chá e ganhar o status de “integrada”, como os membros do fictício Portal da Divina Luz se definiam (o preço foi gradativamente aumentando). A Paula autora não diz o nome real da comunidade nem colegas famosos que nela iam. Mas são nítidos os pontos de confluência com o que viveu de fato e o que narra em sua primeira incursão literária.

Para começo de conversa, as duas Paulas tiveram uma infância muito religiosa, resumida assim pela personagem: “Minha nossa, como rezei! Rezava pedindo aos anjos proteção para mim, meus pais, minha irmã e minha tia, rezava para ir bem na prova do dia seguinte e para ganhar a banheira da Barbie na Porta da Esperança do programa do Sílvio Santos” (não ganhou).

Na fase ayahuasqueira, criadora e criatura encarnavam a típica persona bicho-grilo, do tipo que carrega no bolso cristais recarregáveis em “tigela com água e sal grosso” e,  ao som de tambores, seguem a  instrução da líder: “Amados, fechem os olhos e voltem para o útero da sua mãe”. A mesma líder que, anos mais tarde, um ex-namorado que também abandonou o Daime chamaria de “vaca desgraçada”.

Com outro namorado “integrado”, a personagem Paula chegou a casar. “A cerimônia incluiu uma meditação coletiva. Imagine minha avó, minha madrinha, todos os tios e primos de Sorocaba, com as mãos esticadas entoando ‘oooommmm’”, descreve.

Conta a Paula escritora: “Você pode dizer que na vida real eu tive uma pessoa que agiu como o Felipe do livro, tentava me alertar, eu brigava, discutia e resistia muito. Felizmente essa pessoa não desistiu de mim e foi uma das responsáveis por eu finalmente me dar conta da loucura onde estava metida.

Outro episódio real abordado na obra: o assassinato de Glauco Villas Boas e seu filho Raoni. O cartunista liderava a igreja daimista Céu de Maria. 

Os dois foram mortos a tiros em 2010, por um jovem que lá tomava ayahuasca e que queria levar Glauco até sua mãe, para que confirmasse a ela que ele era Jesus. Ele foi assassinado numa prisão seis anos depois, detido por outro crime.

Picarelli demorou quase uma década para colocar suas experiências no papel. A maioria dos amigos daquela época sumiu do mapa. 

“Muitos temem propaganda negativa da ayahuasca. A crença parece um copo de vidro, as pessoas têm medo de quebrar.” Hoje ela se declara cética e ateia. “Difícil acreditar num ser superior que crie um universo para a gente sofrer o tanto que sofre.”

Foram-se os tempos em que “a gente achava que ia salvar o mundo cantando e dançando por quatro horas”, numa “narrativa paralela alucinada”, diz.

Livros como o de Paula Picarelli, 40, só reforçam uma visão pejorativa e preconceituosa sobre a ayahuasca, que de alucinógena nada tem, como gostam de falar por aí, afirma Luiz Antonio de Paula, 60.

Ele lidera a daimista Igreja Senhora Santana, de São Paulo, e de cara repele o título dado por Picarelli a seu livro. “O Santo Daime não é uma seita. Diante do sincretismo religioso, é para ser tido como uma religião da floresta.”

Segundo ele, a ayahuasca não causa alucinações pois tem substâncias enteógenas, um neologismo que significa “manifestação interior do divino”.  Assim, expandiria a consciência para que quem tome o chá veja o que já traz dentro de si —dos piores medos às maiores alegrias. Tudo muito pessoal: alguns encontram gnomos, outros se sentem de volta ao útero da mãe.

“Essa moça [Paula], o que ela viu foi o que ela é”, afirma.

O site www.santodaime.com traz seção de perguntas e respostas para questionar lugares-comuns sobre a prática, como: “Quando ingerimos a bebida ficamos ‘doidões’?”. Resposta: “De forma alguma, o que aumenta é a consciência sobre nós mesmos”. 

Uma das citações que abrem o livro de Paula Picarelli: “Para quem está com um martelo na mão tudo é prego”. Creditado como um dito popular.

A Seita

  • Preço R$39,90 (224 págs.)
  • Editora Planeta
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