Na sequência de fotografias da série “Fotopoemação”, a artista ítalo-brasileira Anna Maria Maiolino segura uma tesoura prestes a cortar seu próprio nariz e sua própria língua. No contexto da ditadura chilena, duas meninas lambem picolés coloridos que encondem soldadinhos de brinquedo em seu interior.
Produzida originalmente pelo Museu Hammer, em Los Angeles, e com passagem pelo Museu do Brooklyn, em Nova York, no início do ano, a exposição “Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana, 1960-1985” desembarca no Brasil no momento em que o voto feminino, aquele mesmo defendido pelas sufragistas no início do século 20, ajudará a definir a eleição mais conturbada das últimas décadas.
Até o dia 19 de novembro, a Pinacoteca ostenta o trabalho de mais de 120 mulheres de 15 países latino-americanos produzidos entre 1960 e 1985.
O recorte temporal não é aleatório: em consonância com a libertação nos costumes pré e pós-1968, o quarto de século em questão marcou o período de endurecimento político e o estabelecimento de governos autoritários em praticamente todo o continente.
Em sete anos de trabalho, as curadoras Cecilia Fajardo-Hill e Andrea Giunta estabeleceram justamente a noção de corpo político como foco central. Com pesquisas iniciadas em 2010, a ideia era que a mostra fosse inaugurada dois anos depois, mas a escala e a complexidade do projeto cresceram em tal medida que foram sete anos para rever os arquivos, viajar para conhecer e entrevistar as artistas e amarrar a seleção.
Valeu a pena. Contundente sem ser panfletário, o conjunto apresentado é uma mistura de força e delicadeza, de afronta e acolhimento, de construção e desconstrução do feminino. Ou melhor, dos femininos, porque o que deriva da exposição é a própria ideia de pluralidade do conceito.
Sem querer encerrar o debate, a pesquisa exaustiva permite entender o que junta e o que separa mulheres de idades, escolas e realidades tão diferentes, da guatemalteca Margarita Azurdia à cubana Ana Mendieta, passando por nomes mais e menos conhecidos dentro do contexto brasileiro.
Organizada em torno de nove eixos temáticos, a mostra pretende “escrever um novo capítulo da história da arte do século 20, um capítulo que leve em consideração as contribuições das artistas latino-americanas, chicanas e latinas para as linguagens experimentais da arte contemporânea”, nas palavras das curadoras.
Revisitando dois dos autores centrais na construção da história da arte latino-americana, Marta Traba e Damián Bayón, entre outros, a dupla constata o protagonismo dos artistas homens nessa narrativa canônica e insiste em uma revisão ou reescritura.
Para dar conta da missão ambiciosa, partem de revisões sobre gêneros clássicos (o autorretrato, a paisagem, o nu) e de um olhar sobre o erotismo, procurando reposicionar a perspectiva masculina e patriarcal que paira sobre essa esfera.
Parece acertada a decisão de concentrar no corpo o centro gravitacional da seleção de obras. Pois é principalmente ao mudar a chave do corpo feminino como objeto para o corpo feminino como sujeito (e aqui entra, por exemplo, o papel central da performance como linguagem) que a exposição revela sua potência.
Ao apresentar o corpo como campo de batalha (da mulher por e contra a sociedade, mas também por e contra si mesma), vem à tona ao mesmo tempo sua vertente poética e seu componente engajado. Nessa dupla chave de leitura, corpos fragmentados em fotos, vídeos, performances e aquarelas são uma espécie de constante —já não há lugar para a inteireza clássica do nu ou para uma visão romântica da maternidade.
Ao costurar artistas dispersas na historiografia de seus respectivos países, a pesquisa permite entrever como a vertente feminina ou feminista abriria caminho para a afirmação das estéticas gay, queer e transexual nas décadas seguintes, como processos que dissolvem ou pelo menos relativizam as representações normativas da sexualidade.
Por outro lado, o conjunto torna evidente como o meio da arte contemporânea em praticamente todos os países representados é um território ocupado por mulheres brancas, vindas da classe média.
É interessante pensar que tanto as indígenas da Amazônia fotografadas por Claudia Andujar quanto a doméstica negra registrada pela panamenha Sandra Eleta estão ali representadas, não representantes. A pluralidade, afinal, vai apenas até certo ponto.
Sabemos que na especificidade latino-americana, a relação entre corpo e violência é central. Algumas artistas, afinal, foram detidas ou forçadas a buscar o exílio por incomodar as ditaduras vigentes, caso das uruguaias Leonilda González e Lacy Duarte, da chilena Cecilia Vicuña ou da argentina Marcia Schvartz.
A um mês da eleição, não deixa de ser sintomático que “Mulheres Radicais” ocupe um dos principais museus da cidade enquanto “Histórias Afro-Atlânticas” ocupa o outro. Em ambos, nota-se que o público do vernissage já não é o que costumava frequentar esse tipo de evento dez anos atrás.
Vinculadas às pautas contundentes, as novas exposições atraem audiências mais jovens e diversas, capazes de arejar um ambiente que tantas vezes cheirava a creolina.
De outro lado, é preciso torcer para que a dita “questão das minorias” não se transforme em vertente única da pauta cultural e faça qualquer outra discussão que não parta do engajamento explícito parecer menor.
É um risco ao qual é preciso atentar.
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