Descrição de chapéu

Filme 'O Anjo do Mossad' sobre espião egípcio tem trama simplória

Baseado em história real de agente duplo de Israel e do Egito, longa da Netflix adere a tese implausível

Igor Gielow
São Paulo

O Anjo do Mossad

  • Onde Disponível na Netflix
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Marwan Kenzari, Hannah Ware e Toby Kebbell
  • Direção Ariel Vromen

O egípcio Ashraf Marwan viveu misteriosamente e arrebatou a condição de herói tanto no seu Egito natal quanto no rival Israel, para quem espionou nos anos 1970.

Sua posição única no círculo íntimo do presidente Anwar Sadat permitiu que ele avisasse o Estado judeu da iminência da Guerra do Yom Kippur, talvez evitando uma derrota israelense em 1973.

Sua vida, por óbvio, merece livros e filmes. Os primeiros já existiam, e um deles, “O Anjo” (Yuri Bar-Joseph, 2016), agora virou filme (“O Anjo do Mossad”), lançado na semana passada pela Netflix.

Como tudo o que acontece entre Israel e seus vizinhos árabes, o material é inflamável. O motivo de saída é a filiação da produção: é dirigida pelo israelense Ariel Vromen.

Ele é um ex-soldado e viu dois amigos serem mortos à sua frente em missão no Líbano, em 1993. Só isso já serviu para a mídia árabe desqualificar o filme como peça de propaganda sionista.

Mas o fulcro da discussão é o papel real de Marwan, segredo que morreu com ele ao cair de forma suspeita de seu apartamento em Londres, em 2007.

É pacífico que ele espionou para Israel e deu três alertas sobre a iminência da guerra em 1973, fazendo Tel Aviv desperdiçar recursos com duas mobilizações e se preparar no aviso final. Uma corte israelense inclusive confirmou sua posição como agente três semanas antes de sua morte.

Então, por que o então ditador Hosni Mubarak deu a Marwan enterro e honras de herói nacional? O senso comum sugere que isso decorre da dificuldade de aceitação de que alguém de tão alto escalão pudesse trair a pátria.

O filme adere a uma tese bastante implausível, segundo a qual ele buscava manobrar os dois governos para tentar forçar um tratado de paz.

O fato é que ninguém sabe a verdade. Marwan se movia como um clássico agente duplo, uma hipótese com vários adeptos em Israel, mas o filme apenas insinua isso.

Já a motivação do egípcio é reduzida a uma vingança familiar. Ele era genro de Gamal Abdel Nasser, presidente egípcio que desafiou o mundo com sua visão pan-arabista e laços com a União Soviética. Só que o sogro o odiava.

Com isso, era humilhado publicamente em eventos e sempre dependia de dinheiro vindo do Cairo enquanto estudava em Londres. O filme ensaia desenvolver a relação dele com a mulher, Mona, mas fica pelo caminho.

Também é pouco explorado o vício em jogo e dinheiro de Marwan. O fato de ter embolsado estimados US$ 100 mil por dica repassada é algo esquecido no roteiro.

Seja como for, essa pessoa frustrada ligou de uma cabine telefônica para a embaixada israelense e ofertou informações, em 1970. Ninguém deu bola, até que Nasser morreu logo depois e Marwan aproximou-se do sucessor, Sadat.

O filme é esquemático, ligando os dois por meio de uma trama simplória para afastar os adversários do novo regime. O Marwan vivido pelo holandês de origem tunisiana Marwan Kenzari é a opacidade em pessoa.

A partir de seu novo posto de conselheiro, Israel o recruta com o codinome Anjo e o filme deriva para um “bromance” tumultuado entre ele e seu contato judeu, Danny (o britânico Toby Kebbel).

Não é nada simples, em especial após os dois alarmes falsos de guerra, referidos de forma infantil (real e metaforicamente) na forma da fábula do “Menino que Gritou Lobo”.

Procurado por diversos órgãos de imprensa, o historiador que revelou a identidade de Marwan em 2002, o israelense Ahron Bregman, negou a versão do filme.

Tendo convivido com ele por cinco anos, disse que o egípcio trabalhava para enganar o Mossad. Seu livro sobre ele vai virar um documentário no Reino Unido neste ano.

Já para o Comitê de Defesa Nacional do Parlamento egípcio, a obra é parte de uma “guerra de propaganda”.

A censura egípcia deu OK em agosto para a produção de uma versão local, engavetada há anos, da história de Marwan. “O Agente”, de Hani Sami, está em pré-produção.

Essa reação dá conta do impacto da ascensão dos serviços de streaming como produtores de conteúdo, abrindo espaço a uma diversidade local antes inaudita no mercado cinematográfico global.

Visões próprias convidam o contraditório, como a própria Netflix já havia provado ao abraçar a série israelense “Fauda”, sobre ações militares infiltradas na Cisjordânia.

Numa das invenções do roteiro, Marwan se atraca com uma loira exuberante junto a uma janela, um disfarce para despistar agentes árabes.

Passado o perigo, ela sugere que a encenação seja consumada. “Se você vai brincar de James Bond, tem de ir até o fim”, diz ela, sem sucesso.

A frase resume o dilema de “O Anjo”. Ele nem é o thriller que se vende, sempre rodando num tom abaixo do esperado, nem tem rigor documental —chamando assim para si escrutínio factual mais duro.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.