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Por que os críticos não respeitam os filmes de terror

Rótulos como "terror sofisticado" mostram a ambivalência da indústria em relação ao gênero

As atrizes Emily Blunt e Millicent Simmonds em cena do filme "Um Lugar Silencioso"
As atrizes Emily Blunt e Millicent Simmonds em cena do filme "Um Lugar Silencioso" - Jonny Cournoyer/Divulgação
Nicholas Barber
BBC News Brasil

Após a estreia do curta-metragem "A Still Sunrise" no Festival de Cannes, em maio deste ano, o ator principal da trama, Jamie Lee-Hill, postou um tuíte acompanhado da hashtag #elevatedhorror (algo como "terror sofisticado", em tradução livre).

"Por que usar esse termo em particular?", alguém perguntou. E Lee-Hill respondeu: "Porque é realmente um drama inteligente com simbolismos dentro do filme".

Será que Lee-Hill quis dizer que os filmes de terror convencionais não são produções inteligentes e tampouco contêm simbolismos? Se for assim, ele estava pedindo para ser perseguido por uma legião de fãs de zumbis contrariados. Mas o ator não está sozinho ao fazer uma distinção entre o gênero "terror" e o chamado "terror sofisticado". 

John Krasinski, corroteirista e diretor de "Um Lugar Silencioso" (2018), afirmou em uma entrevista que sua obra não foi inspirada em filmes comuns de terror, mas em "filmes extraordinários de terror sofisticado" —uma referência à recente onda de produções cinematográficas que foram mais aclamadas pela crítica do que as fórmulas tradicionais de monstros e susto fácil. 

Alguns exemplos emblemáticos são: "O Babadook" (2014), dirigido por Jennifer Kent, que mostra uma versão sombria da maternidade; a história de terror colonial "A Bruxa" (2015), de Robert Eggers; "A Corrente do Mal" (2015), de David Robert Mitchell, com sua premissa simples, mas engenhosa; "Grave" (2016), da francesa Julia DuCournau, que faz um paralelo entre o canibalismo e o despertar da sexualidade; a explosão antirracista "Corra!" (2017), que rendeu a Jordan Peele o Oscar de melhor roteiro original; e o recém-lançado "Hereditário", estrelado por Toni Colette.

Mais reflexivas e experimentais que os filmes convencionais do gênero, essas produções levaram os jornalistas a rotulá-las não apenas como "terror sofisticado", mas também como "pós-terror", "terror inteligente", "terror sério"... —tudo, menos "terror".

No entanto, os entusiastas do terror não estão felizes com o que consideram um desprezo paternalista e reducionista do gênero que veneram. Anne Billson, romancista e crítica de cinema britânica, resumiu o sentimento desses fãs em um tuíte: "Sempre que um filme de terror faz sucesso, há invariavelmente um artigo classificando-o de horror 'inteligente', 'sofisticado' ou 'cult'. Eles odeiam tanto o terror que rotulam seus hits como outra coisa."

A escritora e cineasta April Wolfe foi além: "Vou surtar se as pessoas não pararem de usar a expressão 'terror sofisticado'! É apenas terror. Não há problema em dizer que é terror! Eu não digo 'dramas sofisticados' para diferenciar os dramas que eu gosto dos que não gosto", escreveu no Twitter.

Talvez elas estejam certas. Talvez as produções de "terror sofisticado" sejam simplesmente filmes de terror que foram bem recebidos pela crítica. Mas basta uma pesquisa rápida na internet para constatar que a expressão não foi criada em resposta a títulos como "O Babadook" ou "A Bruxa".

O termo aparece em um fórum de discussão em 2010. E, em 2012, alguém se referiu a ele como "uma nova expressão da moda usada por executivos de Hollywood". O rótulo remete à eterna ambivalência da indústria cinematográfica em relação ao terror —o gênero com o qual não consegue viver, mas também não pode viver sem.

"Não há fórmulas claras para ganhar dinheiro na indústria do cinema", diz Simon Rumley, diretor de "Distúrbio Fatal" (2006), "Vermelho, Branco e Azul" (2010) e "Fashionista" (2016)."Mas uma coisa é certa: o terror ainda tem a capacidade de ser o gênero mais lucrativo do setor quando você põe na balança o dinheiro investido (que não é muito) e o retorno (que, às vezes, é grande). Não é necessária nenhuma celebridade. Uma campanha popular em uma comunidade efervescente e engajada pode dar início à presença online de um filme. Por que gastar US$ 150 milhões quando você pode desembolsar US$ 3 milhões?"

Os filmes de terror são, portanto, uma das formas mais seguras de os patrocinadores conseguirem retorno sobre o investimento. Mas o custo muito baixo e, vamos falar a verdade, todo o sangue que jorra, também fazem com que sejam vistos como uma alternativa barata e embaraçosa em relação ao consagrado drama.

A imagem incômoda do gênero tampouco melhorou em meados dos anos 2000, quando as franquias de terror de maior sucesso —"Jogos Mortais" e "O Albergue"— estrearam com suas cenas macabras. Sim, elas ganharam dinheiro —US$ 975 milhões, no caso da série "Jogos Mortais"— mas também deixaram as pessoas nauseadas. É fácil entender por que podem não ter apelo para um produtor à espera de um Oscar ou Bafta (prêmio do cinema britânico).

Simon Rumley lembra bem dessa época. "Eu sugeri um filme para uma executiva do Reino Unido e ela praticamente gargalhou, foi algo entre ser pedante e sentir pena de mim: 'Não fazemos terror!'" Desde então, ele descreve suas obras como "drama extremo".

Ao mesmo tempo, Dan Berlinka, roteirista de televisão, ganhador do Bafta e aficionado pelo gênero, admite que, quando lançou recentemente uma série de terror na TV, optou pelo termo "thriller-chiller" ("suspense de calafrios", em tradução livre).

O constrangimento cultural gerado pelo terror não é novo, como lembra Tim Snelson, historiador cinematográfico. "Ciclos de filmes de terror inteligentes e sofisticados foram surgindo ao longo da história do cinema, especialmente quando sucessos comerciais e de crítica simultâneos, como "Rebecca" (1940) ou "O Exorcista" (1973), chamaram a atenção da indústria e do público para seu apelo duradouro", conta Snelson.

"Mas Hollywood usou historicamente expressões como 'chillers' (que remete a calafrios), 'chocantes', 'mistérios', 'filmes psicológicos' ... todos os tipos de termos para distinguir suas produções de prestígio das conotações negativas do terror."

Se essa conotação se tornou menos negativa ultimamente, é por conta basicamente de duas empresas independentes: Blumhouse (de "Corra!", "Fragmentado", "Uma Noite de Crime") e A24 ("Hereditário", "A Bruxa"). Ambas patrocinam histórias de terror baseadas em ideias, em vez de derramamento de sangue. Mas nem todo mundo é fã desses filmes.

Em fevereiro de 2016, Bret Easton Ellis, autor de "Psicopata Americano" (2000), tuitou: "Terror Indie Independente está se tornando o gênero novo de que menos gosto: 'Corrente do Mal, 'Boa Noite, Mamãe', 'O Babadook', 'A Bruxa'". Tudo bem. No entanto, ao agrupar esses filmes sob um único rótulo, Ellis parece reconhecer que não são apenas filmes de terror que fizeram sucesso, como afirma a crítica de cinema Anne Billson. São produções distintas o suficiente para merecer um gênero próprio. 

O problema é que adjetivos como "sofisticado" e "inteligente" sugerem que os outros filmes de terror são intrinsecamente inferiores —e é possível compreender por que os fãs do gênero estão irritados.

"Quando 'O Exorcista' foi lançado, todos sabiam que era sofisticado, mas ninguém questionava se era ou não um filme de terror. Era claramente um filme de terror. Naquela época, você podia elogiar um filme de terror sem sentir a necessidade de esculhambar todos os outros ao mesmo tempo", diz Berlinka.

Em contrapartida, Berlinka admite que seu desconforto com o "terror sofisticado" —não só com a expressão presunçosa, mas com os filmes— não se resume à irritação com os críticos "esnobes". Por um lado, ele simplesmente não quer que seu nicho underground se torne respeitável.

"Os fãs de filme de terror são como os fãs de música que reclamam que sua banda indie favorita não é popular, mas ficam chateados quando isso acontece. Gostamos da natureza um pouco proibida do horror. Gostamos do fato de que muitas vezes ele é imperfeito e apela para nossos piores instintos. No fundo, é por isso que ficamos tão suscetíveis com o 'terror sofisticado'. Não queremos que nosso horror seja sofisticado. Parem de sofisticá-lo!"

Ao que parece, esses filmes novos não estão apenas obrigando os novatos do terror a rever seus preconceitos em relação ao gênero, como estão forçando os fãs de terror a fazer o mesmo. Mas, independentemente do lado que você estiver, o fato de estarem sendo produzidos tantos filmes de terror de alta qualidade não pode ser ruim.

No longo prazo, é provável que o rótulo "terror sofisticado" desapareça —e títulos afamados, como "Corra!" e "Um Lugar Silencioso", apareçam ao lado de "O Massacre do Micro-ondas" e "Sexta-Feira 13" em todas as enciclopédias de terror.

"O rótulo de terror funciona não apenas para as produções sanguinárias de baixo orçamento, mas também para os filmes inteligentes, transgressores e impossíveis de categorizar", diz Rumley."Eu poderia argumentar que 'Monstros', de 1932, é um drama extremo, que 'Eraserhead', de David Lynch, é um filme de terror cult, ou que 'Santa Sangre', de Alejandro Jodorowsky, é uma produção estrangeira de horror cult."

"'O Iluminado?' Definitivamente, um filme de vanguarda. 'O Bebê de Rosemary'? Sem dúvida, terror sofisticado. 'Tetsuo - o Homem de Ferro', de Shin'ya Tsukamoto? Que tal terror-independente-estrangeiro-sofisticado?"

"Mas a realidade é que os filmes acima podem ser reunidos sob uma única bandeira. Eles são perturbadores e desafiam o público a pensar. De um jeito ou de outro, são todos de terror", conclui Rumley.

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