O cinema iraniano é prodigioso em cenas de diálogo em automóveis. Dispositivo dramático, aliás, bastante arguto: em um carro, personagens podem falar com liberdade (o que, no Irã, nem sempre é possível fora dali). Também é um local que sugere intimismo, até claustrofobia, ainda que esteja em plena errância. E é um lugar em que uma conversa flui bem, já que as pessoas não precisam se olhar nos olhos.
O longa iraniano “Sem Data, Sem Assinatura” segue essa tradição persa, com várias conversas dentro de um veículo, explorando com destreza as possibilidades permitidas por essa situação. Mas o grande interesse do diretor Vahid Jalilvand é por outro procedimento também muito usual no cinema de seu país: discutir posturas éticas.
Faz isso por meio de Kaveh, médico que atropela uma moto por acidente. Fere o filho do motociclista no pescoço, mas presta socorro e se tranquiliza ao verificar que ele passa bem. Mas, no dia seguinte, um susto: o garoto surge morto.
A autópsia aponta intoxicação alimentar, mas Kaveh acha que o óbito pode ter sido pela pancada. Resolve, então, investigar o que de fato vitimou a criança.
Kaveh não é um santo. É até um sujeito ríspido, sobretudo com mulheres (outra tradição local, ao menos em alguns meios no Irã). Mas sabe o peso do que pode ter feito e aceita assumir sua eventual responsabilidade.
O roteiro é engenhoso: cada nova atitude dos personagens gera sérias implicações, às vezes comprometendo terceiros. O filme sublinha o quanto os atos humanos, mesmo irrisórios, podem ter graves consequências.
Jalilvand é capaz de cenas memoráveis. Quando o pai urra pelo filho morto, o que se vê não é mais um homem, mas um animal em desespero —é um dos lutos parentais mais atordoantes que o cinema já produziu. Pena que o diretor por vezes se deslumbre demais com o que ele próprio encena. Quase arruína uma sequência que começa formidável, quando o mesmo pai agride um açougueiro —mas a cena demora tanto e é tão reiterativa que escoa para o melodrama pesado.
Mas Jalilvand faz um bom estudo sobre culpa e aceitação de responsabilidade. O código de conduta do Irã atual nem sempre ajuda, mas muitos iranianos parecem dispostos a se tornar mais empáticos. E, ao mostrar isso, o filme se insere em outra notável tradição do cinema de seu país: a do humanismo.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.