Após quase 30 anos, Terry Gilliam exibe sua epopeia sobre Dom Quixote

Filme, que atravessou tempestades, doenças e dívidas, é destaque da Mostra de SP

Guilherme Genestreti
Cannes (França)

“Corta! Corta! Mas qual é o problema agora?”, grita Terry Gilliam, enquanto caças lançam bombas num exercício militar a metros de onde o cineasta roda seu longa-metragem. A cena aparece no documentário “Perdido em La Mancha”, registro dos infortúnios que atrapalharam a produção da comédia fantástica “The Man Who Killed Don Quixote”. 

Uma tempestade, dois derrames, uma ação judicial, um problema na próstata e incontáveis dívidas também assolaram a realização do filme, inspirado na obra de Cervantes.

A produção se arrastou por quase 30 anos desde que Gilliam teve o lampejo inicial, entre 1989, até lançá-lo no último Festival de Cannes, em maio deste ano. Uma das mais folclóricas odisseias da história do cinema, a obra é destaque da​ Mostra de SP.

“Não sinto culpa alguma pelas vidas que destruí com esse filme”, diz o diretor a este repórter, em Cannes, apenas dez dias depois de sofrer um derrame, “uma coisinha de nada”, segundo ele. “Só prejudicou a minha visão do olho esquerdo. Para um cineasta visionário como eu, isso é péssimo.”

Trajando uma bata com estampa afro, chinelo gasto e calça jeans manchada, o americano de 76 anos e rabo de cavalo pairava como um alien no restaurante, um bicho-grilo em meio à pompa do balneário francês. E respondia a tudo com chistes que fazem jus à sua trajetória à frente do Monty Python, histórico grupo de humor escrachado. 

“No livro de Cervantes, o personagem lê romances de cavalaria e fantasia com essas coisas. O cinema também te faz fantasiar com super-heróis, toda essa merda. Quis botar essas camadas no filme.”

Ao longo das décadas, “The Man Who Killed Don Quixote” ganhou ambientação contemporânea. “Trazer a trama para o mundo de hoje barateava os custos. É assim que os artistas de verdade trabalham: optando pelo que é mais barato.”

Não foi sempre assim. A ideia inicial era adaptar fielmente o romance. Johnny Depp, Ewan McGregor, Robin Williams e Jean Rochefort foram nomes passaram pelo projeto e o abandonaram. 

Em 2000, ano das primeiras filmagens na Espanha, Depp ainda estava escalado. O ator aparece nas cenas do documentário “Perdido em La Mancha”, que retrata Gilliam como um megalômano amalucado 
que enlouquecia sua equipe.  

Nada do que foi rodado na época pôde ser aproveitado.

Uma tempestade arruinou os equipamentos, e Rochefort, que vivia Quixote, fora acometido por um problema na próstata, tendo de abandonar o filme no meio. Com a interrupção —e após disputas com financiadores—, a obra ficou estacionada até 2016, quando o diretor enfim conseguiu novos financiamento e elenco. 

Os anos o fizeram mudar o roteiro, que acabou herdando carga autorreferente. “Virou uma história sobre os perigos do cinema”, diz o americano, com conhecimento de causa. 

Adam Driver faz um diretor de comerciais desiludido que tem lembranças de um projeto da juventude, uma adaptação de “Dom Quixote” feita com não atores. Ele sai em busca do sapateiro espanhol (Jonathan Pryce) que interpretou o personagem-título na ocasião. Mas o homem está crente que é o próprio protagonista cervantino e toma o cineasta por seu Sancho.

No encalço do diretor interpretado por Driver há executivos sanguinários que evocam os vários produtores que ficaram no pé de Gilliam. O último deles, o português Paulo Branco, ainda move uma ação na Justiça contra o americano. 

“Não receberei mais nenhum centavo para fazer um filme, eu sei”, diz o cineasta, que não costuma ser econômico. “Brazil”, “O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus”, “Medo e Delírio” e “Os 12 Macacos” são obras que consagraram a identidade visual do diretor: lisérgica e estridente.

Oriundo da cena hippie de Los Angeles, ele diz que filma para matar o tédio. “Me aborreço muito fácil. Odeio praias, odeio tudo. Daí me bate a vontade fazer um novo filme.”

Quando não está filmando, o diretor pode ser encontrado em sua casa na região italiana da Úmbria, construindo muros de pedra e “atacando as plantas que invadem tudo”. 

“Vou para lá para descontar minhas frustrações na natureza, que está sempre disposta a retomar o planeta para si.”

The Man Who Killed Don Quixote
Direção: Terry Gilliam. Elenco: Adam Driver, Jonathan Pryce, Stellan Skarsgård. 16 anos. Mostra: sáb. (27), às 20h50, no CineSala; dom. (28), às 18h10,no CineSesc; ter. (30), às 14h, no CineArte Petrobras; qua. (31), às 21h10, no Cine Belas Artes

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