'Cinema não está morto e mal nasceu', diz diretor de destaque da 42ª Mostra

Mexicano Carlos Reygadas destila sua abordagem pouco usual em 'Nuestro Tiempo', drama sobre casal em crise

Bruno Ghetti
Veneza

"Não quero fazer filmes seguindo manual de instruções." É assim que o diretor mexicano Carlos Reygadas justifica os procedimentos que aplica a seus longas.

Seu mais recente, "Nuestro Tiempo", destaque na 42ª Mostra Internacional de Cinema, fala sobre um casal em crise, mas a câmera se detém sobre situações particulares.

Por quase três horas, o filme mostra Juan e Esther, casal de classe média alta e origem urbana que optou por uma casa de campo. Certo dia, Esther tem uma relação extraconjugal com amigo americano que visita o rancho. Juan fica a par da situação, e o casal tenta manter o relacionamento, mesmo que aberto.

Quando Reygadas diz não seguir um manual, não está mentindo —já não o fazia em longas anteriores, como "Japón" (2002), sua obra-prima, e "Post Tenebras Lux" (2012). Os acontecimentos são insólitos, as situações, imprecisas, e as intenções dos personagens são, em geral, um enigma.

O diretor interrompe o fio narrativo com cenas aparentemente aleatórias. Em "Nuestro Tiempo", filma sem pressa um pôr do sol, inclui conversas de personagens terciários e uma longa tomada aérea de uma cidade e capta um equino sendo estripado por um touro (a cena é assombrosa).

Mas é justamente na força instintiva das cenas que reside o fascínio de Reygadas. "Cada imagem, no cinema, precisa ter algum mistério. Se não, é mera imitação da vida", disse o cineasta à Folha no último Festival de Veneza.

"Quando falam que cinema é sobre contar uma boa história, acho uma tristeza; é nos livros que você as encontra. O cinema é mais adequado para transmitir sentimentos. Se o diretor compartilha visões, o filme é original", sentencia.

Reygadas reconhece que muito do que cria não vem de elaboração racional, mas da intuição. "Os bons diretores em geral não sabem o que estão fazendo. E nem precisam —são como os barqueiros de Veneza, que conduzem tão intuitivamente seus barcos."

Em sua estranheza, "Nuestro Tiempo" vai se solidificando paulatinamente, com as cenas "desconexas" e as mais claramente narrativas se amalgamando em painel encantatório e doloroso. Como "Cenas de um Casamento" (1973), de Ingmar Bergman, busca a confusão emocional entre duas pessoas que se amaram e viveram em harmonia até quando foi possível.

"É como passamos a vida: pensando, planejando, tentando nos comunicar. Falhamos, mas nos recompomos e tentamos novamente. Em dado instante tudo acaba. Assim como o próprio mundo uma hora vai deixar de existir."

Apesar da pouca experiência dramática, Reygadas escalou a si próprio para viver Juan. Esther é interpretada por Natália Lopes, sua mulher na vida real. E sobrou para as crianças: as do filme também são a prole do casal fora da tela.

A escolha foi por razões práticas, ele diz. "Não queria passar tanto tempo longe dos filhos, e eles acabam ajudando nas filmagens", explica o diretor, que nega qualquer traço autobiográfico na trama.

"Essas coisas acontecem o tempo todo: homens e mulheres têm maridos e esposas incríveis, mas podem se ver nesse tipo de situação. Os outros os chamam de imbecis, mas provavelmente não o são", diz. "Na minha visão, Juan está lutando por seu casamento. Até se abre e deixa que ela tenha um caso, mas depois fica com ciúme. E ela provavelmente também o ama, só está procurando viver sua aventura."

Em "Nuestro Tiempo", Reygadas mostra não crer em padrões para amor, relacionamento e sexo —além, é claro, do modo de filmar. Para ele, o cinema está longe de esgotar todo seu potencial criativo.

"Eu tenho pena dos críticos: os filmes parecem feitos do mesmo jeito. Por que não mostrar a umidade, a chuva, um cavalo de modos diferentes?", indaga. "[O cineasta] Peter Greenaway diz que o cinema está morrendo, mas acredito que ainda mal nasceu. Se morrer, terá sido um aborto."


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