Descrição de chapéu

Discurso de Criolo em clipe esconde crimes hediondos sob manto das boas intenções

Pose da superioridade moral gerou novos monstros perigosos e não devidamente representados no clipe

Joel Pinheiro da Fonseca

O clipe de “Boca de Lobo” começa com moradores de um edifício em chamas batendo panelas nas sacadas. Temos ali o sintoma —o incêndio metafórico que devora o país— e a causa, os paneleiros, que tiraram Dilma; ou seja, a direita.

A mesma tese é repisada pelo clipe todo. Ele cria um cenário apocalíptico, com protestos, bombas, guerra civil, corrupção e pânico generalizado. Pobres e negros morrem vítimas da ação policial e da falta de recursos, enquanto ricos fumam charutos, cheiram cocaína e festejam em meio à chuva literal de dinheiro.

Vários eventos reais da nossa história recente (repressão policial em 2013, o incêndio no Largo do Payssandu etc.) são referenciados.  No símbolo mais forte, representando vícios e interesses escusos que dominam o país, animais gigantes causam o terror.

O foco é mais na calamidade pública que assola o Brasil do que em suas causas, mas não é difícil identificar a visão política do clipe: os males do país advêm de um lado do espectro político, que nada mais é do que o instrumento da elite na luta de classes contra o povo. 

E mais: há identificações diretas dos culpados. Um paramédico tem “PEC 55”, a PEC do teto de gastos, escrito em seu uniforme; a criança que ele atende está desamparada. Talvez Criolo prefira o exemplo de estados que não fizeram ajuste fiscal nenhum e ficam sem dinheiro para pagar funcionários, inclusive médicos? A mensagem das imagens é, inclusive, bem mais direta e menos nuançada que a da letra, na qual impera um caos intencional de referências da cultura e atitudes psicológicas mais difíceis de se destrinchar.

Num momento cômico pela falta de sutileza, um tucano gigante derruba um helicóptero. No entanto, nem o sol do socialismo com liberdade e nem a estrela dos trabalhadores brilham na noite apocalíptica de “Boca de Lobo”. Destruição e ódio sem vislumbre de dias melhores; trata-se de uma visão de desespero. As forças do mal cobrem o país. 

Viver o apocalipse causado pela ganância da elite e da direita é psicologicamente confortável: o corpo sofre, mas a alma encontra um culpado externo, se assegura de sua própria superioridade e se resigna a apenas acusar. Na realidade, esse discurso acoberta crimes hediondos e resultados desastrosos sob o manto das melhores intenções.

Não é de se admirar que tenha gerado uma reação contrária igualmente simplória. A letra até dá indícios de uma revolução que se gesta nas periferias. No mundo real, um novo ardor revolucionário de fato existe, mas não aponta na direção sonhada pela esquerda.

A obra traz uma catarse para este momento de falência generalizada do Brasil. Para superá-lo, contudo, precisaremos de mais do que maniqueísmo e revolta impotente. A pose da superioridade moral gerou novos monstros perigosos e não devidamente representados no clipe. O ódio precisa de uma resposta que não ele próprio. Tenho certeza de que, neste momento, Criolo ficaria feliz se o grande inimigo a se combater fosse um tucano.

Joel Pinheiro da Fonseca é economista, mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo

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