Fotografia fica em segundo plano na terceira edição do Valongo Festival

Performances e debates deram a tônica do evento, marcado por questões do corpo e da desigualdade racial

Obras da exposição do Valongo Festival
Obra do angolano Kiluanju Kia Henda, principal atração do evento  - Divulgação
Gabriela Longman
Santos

Criado originalmente como um festival de fotografia, feito principalmente por e para fotógrafos, o Valongo Festival Internacional da Imagem atravessou sua terceira edição revendo os rumos.

Performances, debates e shows deram a tônica de um encontro agora mais voltado para questões do corpo e da desigualdade racial em Santos, no litoral paulista, de 12 a 14 de outubro.

Responsável pelo projeto, Thamires Matarozzi se separou do antigo sócio-fundador Iatã Canabrava. Convidou Diane Lima, uma das principais curadoras negras em atividade, para criar o que chama de campo de experimentação “mais expansivo, mais potente, muito mais explosivo em todos os aspectos”.

Ao lado de exposições em imóveis históricos e contêineres, uma série de workshops e programas de filmes ocupou os três dias do festival costurando quatro eixos temáticos: imagem, território, corpos em perspectiva e política.

“A gente partiu dessa encruzilhada”, explica Lima, que definiu o título “Não me Aguarde na Retina” a partir de um poema de sua própria autoria: “Não me aguarde na retina/ Provavelmente eu vou estar sentado em um lugar onde você não consegue me enxergar”.

 


Além da referência ao momento político, o tema conversa com o próprio Valongo. Sede da antiga estação de trem que ligava Santos a Jundiaí, de armazéns e quilombos, o bairro é hoje um cenário em que imóveis históricos dividem espaço com caminhões, terrenos baldios e guindastes. Em torno de 2000, a prefeitura prometia transformar a zona no Pelourinho santista, mas o plano não vingou. 

Em meio ao cenário histórico decadente (as plantas crescem com toda força pela parede dos antigos casarões), flutuam um enorme prédio da Petrobras e um hotel Ibis, construídos em 2012 e 2013 como grandes promessas do desenvolvimento do pré-sal.

A programação do festival teve como principal convidado o angolano Kiluanju Kia Henda. Reunindo três séries feitas entre 2009 e 2017, a exposição ”Sem Título, Sem Pele – Da Tragédia à Utopia” ocupou o principal espaço da Doca. Perto dali, a mostra “Zumvi – A Gente Ascende É nos Outros” reunia imagens de acervo sobre o movimento de resistência negra da Bahia. Espalhada em três diferentes espaços, uma coletiva reuniu obras de 21 artistas, em sua maioria superjovens, com uma expografia que oscilava entre o inventivo (a projeção de vídeos sobre chapas de madeira) e o precário.

Mais do que trazer a temática negra para as obras e artistas selecionadas, a curadora montou uma equipe com negros em quase todos os setores e funções, quase que invertendo a ideia de uma política de cotas.

De todos os funcionários, 90% são mulheres. “Eu não posso estar no palco falando de presenças e ausências negras se eu não tenho uma equipe que consegue performar isso. Esses corpos falam por si. Não sou eu dizendo, sou eu fazendo e sendo”, afirma Lima.

Quilombo, descolonização e protagonismo se tornaram, assim, três termos quase que onipresentes nas atividades. A radicalização do ativismo parece tomar conta diante de um momento em que a própria ideia de ativismo se vê posta em ameaça. Com orçamento de aproximadamente R$ 1,2 milhão, o festival teve 70% de sua verba captada via Rouanet.

Conectada mais com o corpo do que com a lente, a juventude se esparramava pelos botecos até o amanhecer, em festas e discussões mais interessantes que boa parte das obras expostas —a fotografia ficou em segundo plano, quase fora de foco. Menos preocupada com a qualidade técnica-estética dos trabalhos apresentados e mais com pesquisa e processo, a nova geração talvez ganhe no engajamento e na alegria, mas perca no rigor.

Se acerta ao repensar hierarquias e lugares de fala preestabelecidos, o festival parece ter um longo caminho no sentido de estabelecer diálogos mais fluidos e inclusivos com o morador de Santos —das famílias de classe média aos fiscais do porto, dos aposentados aos habitués da Vila Belmiro—, numa conversa que passe além do hermetismo engajado de boa parte da produção contemporânea. 
Já planejando fazer uma costura além-mar com o Valongo do Rio de Janeiro e do Porto, em Portugal, o festival tem antes de tudo a tarefa de conversar mais e melhor dentro de casa.

“Eu sou daqui, mas o projeto não é daqui. Parece que ele aterrissou. A gente criou um grupo local, com um trabalho de escuta muito forte”, diz Matarozzi . Mas, na prática, “sair da bolha”, expressão que passamos a ouvir todos os dias, parecem ainda um desafio para o festival. E não só para ele.

A jornalista viajou a convite do Valongo.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.