'Fico feliz de fazer esse filme num momento tão triste', diz Jorge Furtado

Com Chay Suede e Marco Ricca no elenco, cineasta adapta peça 'Rasga Coração', revisitando junho de 2013 e a ditadura militar

Maria Luísa Barsanelli
São Paulo

É como se o Brasil tivesse dado um giro de 360º e caído no mesmo ponto, diz Jorge Furtado. Em sua adaptação "Rasga Coração", peça escrita nos anos 1970, o cineasta traz a história para os anos recentes, mas sem precisar de grandes mudanças no texto.

Faz mais de dez anos que o gaúcho enseja uma versão da obra para o cinema. Achava, porém, que ela não ecoava naqueles tempos. "Não fazia sentido num Brasil democrático, tudo dando certo. Aí o mundo andou de um jeito que a peça se encaixou, hoje é de uma atualidade assustadora."

A atualidade é o clima turbulento de hoje, que remete à ditadura militar e às lutas políticas do país, ponto central da peça de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, sua obra derradeira —o dramaturgo, já debilitado por um câncer, ditou o último ato à sua mãe; morreu em 1974, antes mesmo da primeira montagem.

O original começa nos anos 1970 e acompanha o funcionário público Manguari Pistolão, militante do PCB. Seu filho Luca, adapto da contracultura, é proibido de entrar na escola devido ao cabelo longo, e arma um plano de resistência junto aos colegas.

Manguari se entusiasma com o engajamento do filho e decide ajudá-lo com ideias. Luca em princípio aceita, mas logo desiste das propostas do pai, um tanto caretas na sua visão, e resolve seguir a sugestão da namorada: uma ação direta, de invasão da escola.

O embate entre pai e filho faz Manguari rememorar a sua juventude e lembrar os conflitos com o seu próprio pai, um brigadista de quem ele discordava politicamente.

Furtado desloca a ação. Em vez dos anos 1970, o presente é 2013, época das jornadas de junho e de manifestações de secundaristas. A juventude de Manguari (papel de Marco Ricca) é 1979, em meio à ditadura.

O ator Raul Cortez em cena da peça "Rasga Coração", em 1979 - Folhapress

O cabelo de Luca (Chay Suede) deixa de ser o problema, a questão agora é a identidade de gênero. O garoto usa saias, pinta as unhas. Sua namorada, Milena (Luisa Arraes), veste-se com roupas masculinas, e ambos não são bem vistos pelos funcionários da escola.

"As reivindicações são outras. Mas tudo fica impressionantemente atual. Luca critica o pai por trabalhar para o governo. E ao mesmo tempo Manguari é um lutador pela democracia. Quer ajudar, mas não tem diálogo. E se vê repetindo o que o pai dele fez com ele", conta o cineasta, que mexeu pouco no original —das cerca de 120 cenas do longa, apenas uma não veio da peça.

Furtado, 59, se vê um pouco refletido em seu Manguari. É da mesma geração que o personagem do filme, tem as mesmas reivindicações políticas de esquerda. "Agora parece que a gente está perdendo a democracia, que a democracia que a gente lutou para conquistar está ameaçada."

"Rasga Coração" é o segundo drama do cineasta, que deu uma pausa nas comédias que lhe deram fama, como "O Homem que Copiava" e "Saneamento Básico". "Está muito difícil fazer comédia. Quando eu leio as coisas que circulam pela internet, eu digo: está difícil achar motivo para rir. Fico feliz de fazer esse filme num momento tão triste."

Mas não é num tom solene que Furtado registra seu longa. Replica o apuro técnico de Vianninha em transitar do político aos pequenos gestos humanos e traz humor em especial no personagem Bundinha (George Sauma), amigo anarquista do jovem Manguari.

"E tinha expressões dos anos 1950 tão boas que, apesar do anacronismo, resolvemos manter", diz o cineasta, lembrando de "X.P.T.O", termo jocoso para algo sofisticado.

Furtado, que assistiu à primeira montagem da peça, de 1979, se debruçou muito no dossiê de pesquisa de Vianninha para criar sua peça (agora relançado, junto à dramaturgia, pela editora Temporal).

Também passou mais de um ano na pesquisa musical e encontrou numa VHS uma canção inédita de Sérgio Sampaio, que precisou ser registrada e titulada pelo filho do músico para integrar a trilha —ganhou o nome "Corda Ré".

Essa se soma a composições de Tom Zé e Jards Macalé, além, é claro, de "Rasga Coração", música de Anacleto de Medeiros e Catulo da Paixão Cearense, de quem Vianninha emprestou o nome da peça.

 

Rasga Coração

Direção: Jorge Furtado. Elenco: Marco Ricca, Drica Moraes e Chay Suede. Livre. Mostra: qui. (25), às 19h30, no Cinearte Petrobrás 1; sex. (26), às 14h, na Cinesala; dom. (28), às 17h10, no Espaço Itaú De Cinema - Frei Caneca 5

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