Filme 'Intervenção' faz retrato do extremo da extrema direita brasileira

Para diretor Tales Ab'Sáber, reativação do imaginário da Guerra Fria cria visão do mundo descolada da história

O professor de psicanálise da Unifesp e cineasta Tales Ab’Sáber, diretor do documentário “Intervenção: amor não quer dizer grande coisa”
O professor de psicanálise da Unifesp e cineasta Tales Ab’Sáber, diretor do documentário “Intervenção: amor não quer dizer grande coisa” - Adriano Vizoni/Folhapress
Philippe Scerb
São Paulo

O documentário “Intervenção: Amor Não Quer Dizer Grande Coisa” retrata, por meio de vídeos retirados da internet entre 2015 e 2016, a opinião da franja mais conservadora da direita brasileira.

Frente à fantasiosa iminência de uma revolução comunista no país, um setor da sociedade construiu um tipo totalitário de pensamento que ignora a realidade para dar sentido a uma ação urgente: a intervenção militar.

Segundo o professor de psicanálise da Unifesp Tales Ab’Sáber, que dirigiu o filme com Rubens Rewald e Gustavo Aranda, o longa mostra como a reativação do imaginário da Guerra Fria é capaz de estruturar uma visão do mundo descolada da história e com lógica própria. O sucesso eleitoral de Jair Bolsonaro seria, para ele, a expressão mais clara de uma “vitória política do delírio”.

Ab’Sáber participou, ao lado de  Luis Carlos Menezes, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, de debate que se seguiu à sessão do documentário, exibido na última quarta-feira (3), na Cinemateca Brasileira. O evento marcou o início do quarto módulo do Ciclo de Cinema e Psicanálise, que tem como tema o mal-estar na civilização e distopia.

Em sua fala, Menezes concordou com o diretor ao afirmar que, frente a um horizonte incerto, as pessoas podem ser induzidas a um “estado psíquico baseado em verdades absolutas em que se tornam incapazes de levar em conta a percepção da realidade” para forjar uma compreensão do mundo.

O desespero e o ódio como expressões de uma ameaça que nunca existiu, presentes nos vídeos, derivariam de um modo de pensar em bloco que aponta para a urgência de uma ação decisiva. O golpe militar reapareceria, então, como uma “intervenção redentora, uma ideia de salvação” frente ao mal encarnado pelo PT e pelo comunismo.

No entanto, se as falas daquelas pessoas são permeadas pela loucura e pelo absurdo frente a uma ameaça irreal, a iminência de ruptura de uma determinada ordem e um contexto de crise aguda também podem contaminar o pensamento progressista. Segundo Menezes, todos os sistemas explicativos devem ser constantemente reexaminados.

“A razão enlouquece. É importante abrir a história para pensar as nuances e a responsabilidade de grupos e indivíduos de esquerda pelo que estamos vivendo”, afirmou.

Ab’Sáber, contudo, rejeita a ideia recorrente de um embate entre dois extremos para descrever um eventual segundo turno entre Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro (PSL). “Tratar um republicano e democrata como Haddad como equivalente a Bolsonaro é uma loucura, um mito que não corresponde à história”, disse.

Enquanto Bolsonaro não se apresenta para os debates, contesta a lisura do processo eleitoral e corre por fora dos canais democráticos, Haddad fez uma gestão conservadora das finanças da prefeitura de São Paulo e construiu ciclovias. “Esse é o monstro que vai acabar com o país?”

“O que interessa para essas pessoas é o mito. Como nos disse Freud, a degradação da capacidade de pensar do indivíduo está atrelada à construção de uma ilusão grupal. Quando manifestado de forma isolada, esse tipo de pensamento é associado à loucura. Coletivamente, ele se torna político”, afirmou.

Menezes, por sua vez, ponderou que nem todos os eleitores de Bolsonaro aderem a um discurso e a uma prática autoritária e antidemocrática. Independentemente do resultado das urnas, caberia pensar se estamos vivenciando uma mutação cultural.

“Para além da disputa eleitoral, nossos padrões de convívio vêm se deteriorando? Desde quando?”, indagou. Ele sugeriu que fiquemos atentos às ameaças crescentes à democracia. “Só quem dela ficou privado sabe que seu valor é inestimável.”

O Ciclo de Cinema e Psicanálise é realizado pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e pela Sociedade Amigos da Cinemateca, com o apoio da Folha. O próximo encontro acontecerá no dia 17 de outubro (quarta-feira) às 19h, com a exibição do documentário "Fogo no Mar", também na Cinemateca (largo Senador Raul Cardoso, 207, Vila Clementino, São Paulo).

É possível retirar os ingressos gratuitamente no local a partir das 18h

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