Guerras culturais se acirram no Brasil, e quem vence é a direita de Bolsonaro

Batalha entre esquerda e direita no campo das artes e costumes tem sexualidade como principal personagem

Importadas dos EUA, guerras culturais se acirram no Brasil, e quem vence é a direita

Ilustração Alex Kidd

Maurício Meireles
São Paulo

Há uma batalha por corações e mentes em curso. Ela não se dá nas urnas, mas no imaginário —com uma mistura de pânico moral e estridência— e está ligada de forma íntima à ascensão política de Jair Bolsonaro, recém-eleito presidente.

Essa batalha é a guerra cultural, que veio para o Brasil importada dos Estados Unidos e, nos últimos anos, arregimenta pelotões de ponta a ponta do espectro político.

É claro que há crise política e econômica, além da Operação Lava Jato, mas a luta entre direita e esquerda no campo da cultura —e seu acirramento no ano passado— embala a popularidade de Bolsonaro.

 
Voltemos ao princípio —as chamadas guerras culturais têm como marco os Estados Unidos do fim dos anos 1980. 

É quando a Universidade Stanford tenta alterar seu currículo e mudar um de seus cursos de cultura ocidental. A nova grade incluiria autores como Rigoberta Menchú, indígena guatemalteca que relatou sua história a uma antropóloga, publicando um livro.

Foi a senha para os republicanos, com auxílio da imprensa, falarem em derrocada da cultura ocidental no ensino. De repente, era como se Platão e Aristóteles fossem ser banidos para dar lugar a índios semialfabetizados.

Um ano depois, uma exposição do fotógrafo Robert Mapplethorpe em Washington seria fechada após protestos --sua obra é um retrato hiper-erotizado do underground gay. Uma das reclamações era o uso de dinheiro público para financiar a mostra.

Qualquer semelhança com a polêmica no ano passado do fechamento da exposição "Queermuseu", em Porto Alegre, não é mera coincidência. O Brasil —sintonizado com essa tendência internacional— agora adota a prática. E quem colhe os dividendos eleitorais dela é a direita.

"Você só tem guerra cultural quando reúne três elementos: raça, sexualidade ou comportamento, ambos sob o guarda-chuva da religião", diz Eduardo Wolff, doutor em filosofia pela USP, que lançará em 2019 um livro sobre o fenômeno nos EUA e no Brasil.

Esse cenário já vinha se desenhando. Do lado da esquerda, surge no país uma militância identitária capilarizada na internet —a luta por representatividade nas novelas, livros e filmes é central na atuação desses grupos.

Por vezes, surge a tentativa de promover expurgos do machismo e do racismo nas artes. Em outra frente, começam a surgir produtos culturais que buscam se adequar a uma cartilha de correção política, em geral pregando para quem já tem afinidades com as causas em marcha.

O último clipe de Criolo, "Boca de Lobo", é exemplar disso. É tão didático e literal, feito sob medida para animar os convertidos, que chega a representar um tucano —tucano de verdade, o animal— ajudando a destruir o país.

Pouco a pouco, os temas favoritos da esquerda na guerra cultural —como a apropriação cultural e a oposição ao "blackface"— perderam espaço no debate. A resposta da direita chegou logo, usando o pânico moral como arma, e a sexualidade virou o principal campo de batalha.

Basta ver a luta contra uma suposta ideologia de gênero que estaria infiltrada na sociedade. A peça "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu", em que Cristo é representado pela atriz trans Renata Carvalho, acumula episódios de censura por onde ela passa.

As teses conspiratórias contra a TV Globo, antes comuns em algumas alas da esquerda, agora são apropriadas pela direita. Como resposta às novelas da emissora, despontam os folhetins e filmes bíblicos da Record, entre eles a cinebiografia do bispo Edir Macedo.

Uma "fake news" deste ano, por exemplo, dizia que a cantora drag Pablo Vittar faria um programa infantil na Globo, com dinheiro da Lei Rouanet —a lei de incentivo passou a ser vista como uma forma espúria de sustentar vagabundos e financiar imoralidades.

Uma esquete do Porta dos Fundos que foi ao ar na véspera da eleição faz troça: Fábio Porchat, vestido de travesti, vai à casa de uma velhinha buscar a sua neta, dizendo que, como a menina fez cinco anos, agora ela pertence ao Partido dos Trabalhadores. Depois, dá um kit à mulher.

"Olha só, é maravilhoso esse kit, eu mesmo era pai de família, era hétero! Li um livrinho desses, ouvi uma Spice Girls, joguei um perfume de jasmim e quando vi eu 'tava' rodando a louca!".

Não é à toa que o programa "Amor & Sexo", da TV Globo, teve uma queda de audiência de 70% nos últimos dois anos —a atração é conhecida por falar de sexo sem travas.

Houve um acirramento do fenômeno no ano passado. Depois do impeachment, os movimentos da nova direita brasileira deixaram de ter um presidente a quem se opor —e é a guerra cultural que impede a dispersão da militância.

Dessa forma, o mundo cultural passou a representar a corrupção da inteligência, e a arte é vista como uma ferramenta de doutrinação.

O debate político, que já deixara a discussão sobre políticas públicas em banho-maria, acontece agora no campo da moral. O textão é o gênero do momento.

Diante disso, a direita pelo mundo consegue transformar a guerra cultural em resultados eleitorais. Steve Bannon, estrategista da campanha de Trump, disse em uma entrevista ao programa 60 Minutes: "Quanto mais eles [a esquerda] falarem em política identitária, mais eu ganho".

O cientista político de centro-esquerda Mark Lilla concorda. Em 2016, ele causou polêmica com um artigo no jornal The New York Times ao culpar a militância identitária pela derrota dos democratas. Lilla tem defendido uma esquerda mais universalista e menos dividida em tribos.

"Desde o período anterior a 1964, o domínio no meio cultural é de esquerda, para o bem e para o mal --eu acho que foi deletério, porque não era a expressão de um consenso, mas da hegemonia. E não há hegemonia que dure para sempre", diz Wolff.

O filósofo diz que, dentro da tradição britânica, liberalismo clássico e conservadorismo não são incompatíveis.

"Quem lidera o movimento pelo casamento gay [no Reino Unido] é o David Cameron. Lá, o conservadorismo está associado a uma defesa das liberdades individuais", diz. "[Esquerda e direita] usam o pânico moral. Mas o bolsonarismo representou uma chancela a um conservadorismo de costumes instintivo e não politizado, que frequentemente é muito violento sim."

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