Descrição de chapéu Moda

Mal cheguei à SPFW e percebi que seria impossível desanuviar

Poeta queria ver alguma coisa bonita em paz, mas vai voltar para a meditação

Angélica Freitas

Fiquei feliz ao ser chamada para escrever sobre a São Paulo Fashion Week, pois achei que seria uma boa chance de escapar um pouco dos problemas éticos-estéticos desta eleição, e também de me dar uma segunda chance no jornalismo.

No início dos anos 2000, eu era repórter e precisei cobrir um desfile de uma marca de biquínis na SPFW. A estrela era a modelo Naomi Campbell. Nunca tinha escrito sobre moda e fiz o melhor que pude. Mas, quando acabou o evento, meu chefe me ligou. "E o mamilo da Naomi?"

Faltava um mamilo no meu texto. Em algum momento, na passarela, o biquíni da supermodelo caíra, revelando-lhe um seio. Havia fotos. Mas eu não tinha visto nada. Culpa dos meus oito graus de miopia? Reportei o aparecimento do mamilo a partir de relatos de testemunhas.

Que mamilo a SPFW46 me reservaria?

 

Mal cheguei ao evento e percebi que seria impossível desanuviar. Há meses um joguinho aterrorizante ocorre na minha cabeça. Olho para uma pessoa qualquer na rua, na padaria, no parque, e me pergunto: "Será que ela vai votar no Bolsonaro?".

Vi um rapaz muito bonito, que parecia pronto para correr um Derby, roupas de equitação, botas de cano longo, só lhe faltava o cavalo. "Será que ele vai votar no Bolsonaro?"

A fim de não pirar, mandei uma mensagem para o meu amigo DJ Zé Pedro Selistre. Ele entende de moda. "Véia (é o apelido dele), será que essas pessoas votam no Bolsonaro?" Véia me falou sobre como a SPFW defende a diversidade. E me aconselhou, sensatamente, a falar com quem estava lá.

Afundei no sofá. Naquele momento não queria mamilo nenhum, nem real, nem metafórico. Me deixa ver alguma coisa bonita em paz, Brasil.

Peguei um sorvete cookies and cream que distribuíam na sala de imprensa e rumei para o desfile do Reinaldo Lourenço.

 

"Vrrrum, vrruuum", o desfile foi anunciado pelo ronco de uma motocicleta, e em seguida apareceram modelos com capacetes, jaquetas, uma onda meio Speed Racer. Divertido.

Mas as modelos deram a primeira volta e pronto, comecei a pensar no esforço enorme para se fazer um desfile, e ainda por cima num momento destes, em que as pessoas têm medo de sair com um simples adesivo.

Pensei também —já é um hábito— no cansaço de quem costurou os vestidos, de onde vieram os tecidos, o seu impacto na natureza, se as modelos tinham se alimentado aquele dia, na loteria genética que possibilita alguém ser modelo.

Meu fluxo de pensamento se interrompeu quando avistei, ao longe, a empresária Costanza Pascolato. Em segundos, recomeçou o jogo. "Será que ela vai votar no Biroliro?"

Saldo desta SPFW: vou voltar para a meditação.

Angélica Freitas é poeta, tradutora e autora de 'Um Útero É do Tamanho de Um Punho'

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