Mulher pelada do quadro 'A Origem do Mundo' foi bailarina apagada e cortesã

Revelada neste ano, Constance Quéniaux teria posado para a obra de Gustave Courbet

'A Origem do Mundo', obra de Gustave Courbet é instalada em museu de Ornans, na França, em 2014

'A Origem do Mundo', obra de Gustave Courbet é instalada em museu de Ornans, na França, em 2014 Sebastien Bozon - 3.jun.2014/AFP

Lucas Neves
Paris

Cento e cinquenta e dois anos perdurou o anonimato da mulher sem cabeça do célebre quadro “A Origem do Mundo”, de 1866, de Gustave Courbet.

Aquela cujas coxas, o ventre, o contorno de um seio e, sobretudo, o sexo causaram furor nas altas rodas da Paris oitocentista –mas também nas mais pedestres redes sociais do século 21, onde sua imagem foi censurada sete anos atrás— acaba de ganhar um rosto convincente.

É o de Constance Quéniaux, bailarina da Ópera de Paris mais tarde conhecida pela atuação na filantropia. A revelação está em “L’Origine du Monde, Vie du Modèle”, ensaio de Claude Schopp a ser lançado na França no começo deste mês.

O retrato que o autor esboça dela é o de uma artista mediana, vista com mais frequência em duos ou formações de grupo do que em solos consagradores. “Não era uma estrela, seu nome não saía nos jornais da época, não sobreviveu à história”, diz Schopp.

Segundo ele, Constance não hesitou em oferecer carinhos a senhores ilustrados em troca de afagos materiais que ajudassem a suprir lacunas deixadas pelo salário módico da Ópera.

Forçada a pendurar as sapatilhas depois de uma década por causa de dores e lesões, não arreda pé dos círculos da boemia. Compõe o “entourage” do compositor Esprit Auber e, pouco a pouco, envolve-se em ações de caridade, voltadas ora para crianças órfãs, ora para surdos e cegos.

No fim da vida, acumula bens. Tem um apartamento em Paris e uma casa no sofisticado balneário de Cabourg, na Normandia, onde ganha prêmios pelo projeto paisagístico de seu jardim particular. “Parece que seu passado de cortesã é totalmente esquecido. Constance vira uma figura respeitável”, afirma Schopp.

Uma cena um tanto distinta da de sua origem no mundo, na pequena Saint-Quentin, polo têxtil do norte da França em que foi criada sozinha por uma mãe iletrada, que trabalhava na usina de gás.   

Até aqui, achava-se que a mulher retratada por Courbet na tela que virou um marco da pintura realista poderia ser a irlandesa Joanna Hiffernan, modelo recorrente do pintor à época da criação da obra, além de amante dele.

Mas seu cabelo ruivo não condizia com o marrom escuro dos pelos pubianos pintados pelo francês –só se ele tivesse deliberadamente mudado o tom para preservar a identidade de sua musa.

Outra hipótese era a de que se tratasse de Jeanne de Tourbey, amante do diplomata turco Khalil Bey, que encomendara a obra. Mas sua notoriedade nos salões burgueses da capital francesa tornava remota essa possibilidade.   

Eis que, cerca de um ano e meio atrás, pesquisando a correspondência entre os escritores Alexandre Dumas filho e George Sand, pseudônimo de Amandine Dupin, Schopp encontrou uma menção cifrada à bailarina da Ópera.

“Não se pinta nem com o pincel mais delicado e sonoro a entrevista da senhorita Queniault”, escrevia o primeiro à segunda, grafando errado o sobrenome da bailarina.

Estranhando a possibilidade de uma modelo ter sido retratada pelo pintor durante uma entrevista, Schopp foi consultar a carta original, de 1871, guardada na Biblioteca Nacional da França.

Descobriu então que Dumas, à época brigado com Courbet por causa do apoio deste à Comuna de Paris (levante antimonarquista do proletariado) meses antes, aludira na verdade ao “interior” de Quéniaux.

“Ele pode ter sido informado da identidade da modelo por Khalil Bey, já que ambos eram grandes colecionados de arte que se visitavam periodicamente em suas respectivas galerias”, explica o ensaísta.

“Talvez ao fim de uma dessas visitas ele tenha levantado o pano verde que cobria o quadro [que só seria exposto ao público no fim do século 20] e confiado o segredo a Dumas.”

Mas, como a tela é anterior à contenda do artista com o autor de “A Dama das Camélias”, pode ser que o próprio Courbet tenha apontado sua musa, já que Dumas tinha em seu acervo uma tela anterior dele e gostava de se aproximar dos pintores cujas obras ele comprava.

São conjecturas. O que é cristalino é o rancor que Dumas a certa altura passou a nutrir em relação a Courbet, tratado por ele como um depravado, um monstro imoral.

Na época da carta, acrescenta Schopp, o escritor --que, na década de 1850, tornara-se célebre justamente por um romance ambientado no mundo da prostituição, ainda que tratada com verniz romântico—conduzia uma espécie de campanha contra o meretrício, visto por ele como epítome da decadência francesa.  Para Dumas, “A Origem do Mundo” tomava ares de gênese de todo mal.

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