Mostra de arquitetura em Portugal ataca descaso com a memória ao som de Gil

Doação desse acervo brasileiro a centro europeu vem à luz no rastro do incêndio do Museu Nacional

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A Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, prédio de Vilanova Artigas

A Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, prédio de Vilanova Artigas Eduardo Anizelli/Folhapress

Matosinhos (Portugal)

​No pátio do museu, uma Brasília bege descansa à sombra da escadaria de concreto. O carro da Volkswagen, lançado pouco tempo depois da inauguração da capital modernista desenhada por Oscar Niemeyer, ali materializa um futuro falido, uma visão de progresso agora vintage que tardou a chegar sobre quatro rodas.

Do lado de dentro, é a música que inunda o espaço. Um alto-falante solitário toca em looping a canção que Gilberto Gil escreveu quando se separou da terceira mulher. “Drão”, um lamento pelo fim de um amor chamado nesses versos de “imenso monolito”, é a espinha dorsal sonora de uma das maiores mostras de arquitetura brasileira já montadas.

É uma celebração de fundo quase trágico, o retrato de um “país cindido”, nas palavras do crítico Guilherme Wisnik, um dos organizadores do evento, traçado a partir de suas construções mais emblemáticas.  

Lá estão imagens, desenhos e plantas das joias modernistas de Niemeyer, da Pampulha a Brasília, o MuBE de Paulo Mendes da Rocha, o Masp de Lina Bo Bardi, a FAU de Vilanova Artigas e quase uma centena de outros projetos que marcaram a forma que se pensou o espaço no Brasil.

São 3.000 itens vindos de 200 coleções distintas que acabam de ser doados por autores brasileiros e por herdeiros à Casa da Arquitectura, museu que ocupa uma antiga vinícola em Matosinhos, nos arredores do Porto, que agora passa a guardar um dos maiores arquivos históricos da arquitetura brasileira reunidos no mundo, rivalizando em peso e importância com coleções em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Embora venha se costurando ao longo dos últimos anos, o acordo de doação vem à luz no rastro do incêndio que destruiu o Museu Nacional. O que noutros tempos poderia detonar uma polêmica —afinal, um enorme acervo da arquitetura do país agora está além-mar— acaba sendo visto com alívio —ali, ao menos, tudo parece estar bem cuidado.

“Se alguém entrar com um cigarro aceso aqui, ele apaga”, conta Ana Filipe, responsável pela armazenagem das peças, numa visita aos arquivos. “Essas salas têm um ambiente controlado, têm menos oxigênio do que o normal.”

Ninguém ali fumava no momento, mas o vaivém de técnicos de jaleco branco nos amplos salões envidraçados e gabinetes isolados pelas portas corta-fogo passa a impressão de lugar seguro para os papéis mais frágeis, alguns deles guardados há anos de modo precário em gavetas e garagens antes da vinda a Portugal.

“Nada estava em condições mínimas de conservação. Era assustador, muito triste”, conta o arquiteto Francesco Perrotta-Bosch, que organizou as obras doadas ao museu português. “Os acervos de arquitetura no Brasil deixam a desejar em termos de conservação. O país ainda precisa evoluir muito com essas condições.”

Nesse ponto, a mostra ali também se revela uma crítica ao descaso do país com a memória. Além de “Drão”, que Wisnik chama de “lindíssima canção de amor”, outras músicas pontuam momentos marcantes da arquitetura brasileira no museu de Matosinhos.

Uma marchinha de Carnaval de Lamartine Babo toca na primeira ala, sobre as casas modernistas de Gregori Warchavchik em São Paulo e o recém-restaurado Palácio Gustavo Capanema, obra de Le Corbusier e Niemeyer, no Rio.

Lucio Costa, o urbanista de Brasília, também é lembrado no início da mostra por seus famosos estudos sobre a cidade mineira de Diamantina. Foi ali que ele encontrou semelhanças entre a arquitetura vernacular portuguesa da era colonial e alguns dos pontos que orientariam mais tarde o modernismo criado no Brasil.

“Diamantina é uma cidade pura, de arquitetura civil portuguesa”, diz Wisnik. “E essa arquitetura luso-brasileira é semelhante à arquitetura moderna, é algo sem ornamentos, geométrico, simples.”

Essa simplicidade arrojada fica mais em evidência no recorte sobre Brasília, onde a bossa nova do “Samba de uma Nota Só” embala o que seria um momento de glória na arquitetura do país, a fase mais ambiciosa de toda a nossa modernidade tropical.

E então o sonho virou pesadelo. “Tropicália”, a canção de Caetano Veloso que se tornou um dos hinos da contracultura do país no auge do regime militar, marca a mudança do centro de gravidade da arquitetura brasileira do Rio para São Paulo, que despontava então com os traços acachapantes do brutalismo paulista.

Maior exemplar dessa escola, a sede da faculdade de arquitetura da Universidade de São Paulo, obra-prima de Artigas, surge na mostra ao som daqueles versos de Caetano, que atacam o “monumento no planalto central do país” onde “urubus passeiam a tarde inteira entre os girassóis”.

“É o monumento visto de forma estranhada. Brasília é o apogeu e a crise da escola carioca”, lembra Wisnik. “Esse é o momento da virada, quando a vanguarda mudou de rumo.”

Essas reviravoltas e mudanças mais e menos sutis no traço das construções são claríssimas na cabeça dos arquitetos, mas acabam se tornando mais nítidas diante dos olhos dos leigos ao som da música.

Wisnik e Fernando Serapião, que organiza a exposição ao lado dele, encontraram nessa aliança com os versos um jeito de ilustrar como a arquitetura reage a mandos e desmandos de uma sociedade atravessada por tremores.

No calor da atual eleição, que polariza o país, a dimensão dos momentos mais conturbados do Brasil parece se tornar monumental ao som de Tom, Gil e Caetano. São vozes que dão uma leitura enviesada, de esquerda, à história. Mas a mensagem talvez seja que um país mesmo rachado tem ídolos incontornáveis. 

O jornalista viajou a convite da Casa da Arquitectura.

Infinito Vão – 90 Anos de Arquitetura Brasileira
Av. Menéres, 456, Matosinhos, Portugal. Até 28 de abril de 2019. Mostra 'Duas Casas' até 10/2. Informações: www.casadaarquitectura.pt


DESTAQUES DA MOSTRA

1930

Casa Modernista da Rua Itápolis, obra de Gregori Warchavchik, em São Paulo

Edifício Esther, de Álvaro Vital Brazil e Adhemar Marinho, em São Paulo

Ministério da Educação e Saúde, atual Palácio Gustavo Capanema, obra de Le Corbusier e Oscar Niemeyer, no Rio de Janeiro

1940

Conjunto da Pampulha, de Oscar Niemeyer, em Belo Horizonte

1950

Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, obra de Affonso Eduardo Reidy

Conjunto Nacional, desenho de David Libeskind, em São Paulo

Masp, projetado por Lina Bo Bardi, em São Paulo

Congresso Nacional, um dos prédios mais famosos de Brasília, desenhado por Niemeyer

1960

Parque Anhembi, obra de Jorge Wilheim e Miguel Juliano, em São Paulo

1970

Centro Cultural São Paulo, obra de Eurico Prado Lopes e Luiz Telles

Sesc Pompeia, projeto de Lina Bo Bardi, em São Paulo

1980

MuBE, um dos principais projetos de Paulo Mendes da Rocha, em São Paulo

1990

Hospital Sarah Kubitschek, obra de João Filgueiras Lima, o Lelé, no Rio

2000

Praça das Artes, obra da firma Brasil Arquitetura, em São Paulo

2010

Instituto Moreira Salles, projeto da firma Andrade Morettin, em São Paulo

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